"A: amor é suspensão (recusas);
MOR: amoooooor é expansãoooooooo (pooooooooossibilidades)."
— Valdivino Pina da Silva.
Clarice viria para um café. Antonella sacudia os pés, cruzados um sobre o outro no sofá, enquanto aguardava. O relógio acabara de anunciar as dez horas, o cheiro de pão de queijo contagiava toda a casa.Talvez houvesse algum acidente na pista, causando o atraso da convidada. Talvez um cachorro tivesse sido atropelado e todos estivessem reduzindo a velocidade para olhar.
Lá fora, o vento gelado anunciava a chegada do outono. A moça estava vestida em um moletom velho, o cabelo castanho num rabo de cavalo alto. Bufou, levantando-se. Parada por um momento, encarou a estante que cobria a parede da sala. Foi até ela, passando o indicador pelas lombadas dos livros, as unhas esmaltadas em azul. A parca luz matutina, vindo do céu nublado lá fora, derramava-se pelas capas preguiçosamente; nuances de sábado. Ela procurava por Romeu e Julieta, mas contentou-se com Memórias Póstumas.
A campainha irrompeu pelo cômodo, alegre. Já não era sem tempo! Apressou-se em meio à mobília, por medo de deixar a visitante congelando na soleira. Clarice vestia jeans e sobretudo. Sua pele de porcelana estava vermelha nas bochechas e ponta do nariz; batia os dentes. Vem, menina, entra logo! Que demora, minha amiga.
Abraçaram-se. Se demoro mais um pouco, a chuva me pega! Desculpa, deixei você com fome? A loja... Meu Deus! Não consigo parar nem para esticar as pernas. Desviou o olhar para os sapatos, tímida das reclamações. Mas nunca estive mais feliz! Sorriu. Está perdoada, está perdoada. Mas acho bom você ganhar muito dinheiro para me compensar isso no futuro. Vem, que o café já deve estar gelado.
A pequena mesa redonda da cozinha, já acostumada com sua segunda função, servia-lhes muito bem enquanto bistrô de um café francês. Aos sábados de manhã, ambas transformavam-se, por algumas horas, em importantes intelectuais do subúrbio, desvendando juntas os mistérios da confusão de viver. O móvel, na verdade, aceitara sua nova missão a ponto de assumi-la como primordial, cada semana inspirando-lhes debates mais profundos.
Bom, no fim eles não ficam juntos, mas admiro sua coragem. Antonella fechava o livro, passando os olhos pelos dizeres da capa. Está elogiando uma traição, Neia? Não lhe reconheço! Cadê a minha moralista favorita? Riram.
Eu tenho pensado sobre os limites da moral no amor...Já ouviu que amar é como estar a bordo de uma locomotiva desgovernada? E pior, temo ser o maquinista. Antonella declarou, baixando sua xícara. É o que vem ecoando aqui. Levou o indicador à têmpora. Sabe, não adianta entregar os controles nas mãos do seu parceiro enquanto grita histericamente. Nem recorrer ao manual ou a algum passageiro intrometido. A responsabilidade é sua, para o bem e para o mal.
Clarice tomou algum tempo para considerar as palavras da amiga, os olhos amendoados voltados para cima em sua típica careta pensativa. Não sei se é a visão ideal, foi sua resposta. Assim você toma toda a responsabilidade para você e todas as consequências são culpa sua. Não parece saudável. Os dois precisam colaborar para a coisa fluir, eu acho. Quando eu estava com o Marcos, tinha um pensamento mais ou menos assim, e veja aonde isso me levou! Acabamos ambos em uma delegacia e talvez as feridas nunca se curem totalmente. Jamais se esforce por um egoísta! Não seja cega como eu.
Ah, claro, isso não significa rastejar por ninguém. Não me entenda mal. Antonella arregalou os olhos, sinalizando negativamente com a cabeça. Estou falando de esforços mútuos para driblar problemas externos, não de implorar por amor. Acho que, num geral, as pessoas levam a ideia de alma gêmea tão a sério que não estão dispostas a contrariar nada por uma relação. São românticos preguiçosos, desistem quando algum mexeriqueiro desaprova a união.
Talvez eu entenda o seu ponto, sim, Clarice anuiu. Se ambas as partes pensassem assim, certamente teríamos um relacionamento utópico. Mas acho improvável. Por aí afora, é difícil construir uma relação sólida o suficiente para se acreditar tanto no valor dela.
Antonella retomou a palavra com um sorriso sarcástico: É curioso ver tanta gente chorando quando Brás e Virgília fazem tudo do mais sórdido para estarem juntos. Para esses leitores, contrariar convenções sociais por amor é algo incomum e digno de lágrimas. Mas não é raro um romance ser reprovado por terceiros. E aí, você faz o quê? Desiste da pessoa que ama?
Clarice riu, metade do pão de queijo entre os dedos finos. Não é raro?! A sociedade tem alguma outra função senão julgar os passos alheios? E como assuntos do coração atiçam-na! São seus favoritos; ela os devora! Sim, estou com você nessa.
É nesse ponto onde esbarro na moral. O ser humano precisa ser mais que moral. Precisa ser sincero e intenso. Não enganar a ninguém, nem a si mesmo. Especialmente sobre o amor. Fez uma pausa. Enfim, a culpa não é só das circunstâncias, é das pessoas também. Se decidem ou não lutar contra elas. Por favor, amemos os lutadores, só e sempre os lutadores.
Clarice ergueu suaxícara, risonha. A vocês, hipócritas de coração partido, meus sinceros pêsamespor tudo que estão perdendo! É mais divertido deste lado. E a nós, para sermossempre maquinistas tresloucadas! Amar intensamente ou não amar.
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Ecos do último coração irracional
Cerita PendekColetânea de contos e poemas dos mais variados temas e tamanhos.