"Liberdade de consciência para quem tem consciência na liberdade" - Autor desconhecido.
O sol latente me fazia suar. Puxei a aba do boné azul mais para baixo, evitando a claridade direto nos olhos. "Trinta e sete graus", dizia a previsão; "efeito estufa", gritavam os jornais. Os pedestres de São José dos Campos, no entanto, não se deixavam abater tão fácil. O centro da cidade continuava lotado de pessoas transpirando e se abanando com folhetos de supermercado.
Mesmo com tanta gente transitando, minhas telas continuavam, em sua grande maioria, onde eu havia colocado-as quatro horas antes. Entre oito da manhã e meio dia daquela segunda-feira, apenas três pinturas haviam sido vendidas. Suas cores vibrantes, cheias de vida, pareciam derreter. Meus quadros choravam, ali, na calçada de uma das mais antigas ruas da cidade.
Uma mãe passou por mim, de mãos dadas com a filha pequenina, que saboreava uma casquinha de creme. Antes que eu pudesse dizer a típica frase, que já fazia meu maxilar doer de tanto repetir, ofertando-lhe um dos meus trabalhos por míseros trinta reais, a mãe deixou cair no chão uma sacola plástica, vazia.
O vento fez com que subisse como uma pipa, desfilando graciosamente para se juntar ao cenário poluído da cidade grande. Passou voando vagarosamente em frente aos meus olhos, provocando-me. Agarrei-lhe pela alça, direcionando um olhar reprovador para a mãe, que ensinava a pequena, desde tão cedo, a desprezar o meio ambiente.
Mas a moça desaparecera. Olhei para os dois lados da rua, cheios de gente. Nem sinal dela. Devia ter misturado-se à multidão. Dei de ombros e voltei a olhar minhas telas, certificando-me de estarem elas em ordem. Arregalei os olhos e senti o coração disparar ao perceber que também haviam sumido. Deixei escapar uma exclamação de surpresa e passei o pé pela calçada, como que acreditando, apenas por um segundo, que podiam ter-se tornado invisíveis. Não havia nada ali.
Varri com o olhar a multidão, buscando um possível ladrão de obras de arte. Como conseguiriam ter pegado tudo aquilo tao depressa? Nada. Ninguém carregando uma só pintura debaixo do braço.
Havia algo errado. Alguma coisa estava diferente na velha rua em que eu costumava ficar. O pressentimento que fazia meu coração apertar-se não era bom.
Por instantes, fiquei parada, tentando encontrar a diferença que, de um instante para outro, causara tamanho impacto em minha percepção. Até me esqueci dos meus quadros. Daquele meu precioso trabalho amargamente arrancado de mim. Por fim, encontrei a mudança, tão evidente que se escondia. Estava bem ali, debaixo do meu nariz, como um alarme de incêndio, urrando para ser notado.
O longo prédio, que se estendia à minha frente, mudara. O cimento, que, antes, prolongava-se por metros e metros, tornara-se um vidro escuro. Uma grande montanha de lixo agigantava-se ao seu lado, como um monstro de histórias infantis.
As roupas dos pedestres haviam mudado, tornado-se mais coloridas e vivas. O calor intensificara-se por mais impossível que parecesse. Senti-me tonta e segurei a cabeça entre as mãos. Pisquei. O que estava acontecendo?
-Ei – uma voz rouca soou perto de mim.
Virei-me para encarar o homem maltrapilho sentado na sarjeta.
-Você está bem, mocinha? – perguntou. –Já faz um tempo que está parada aí.
-Eu...- Não sabia como responder. Não sabia onde estava – estou bem.
Sorri e olhei ao longe. No horizonte além do prédio de vidro e da multidão havia muito mais lixo. Restos de comida, caixas, eletrônicos, pneus e brinquedos. Tudo contrastando com as roupas e sacolas de compras da população. Andavam todos muito pomposos, com roupas obviamente caríssimas e joias em exagero.
-Não precisa ter vergonha, mocinha. Sou um rejeitado também. –Ele voltou a falar e percebi faltarem-lhe alguns dentes.
-Rejeitado? –indaguei.
-É. Sabe, comigo foi quando me recusei a comprar o celular da moda. Foi quando viram que eu não era útil para a Nova Ordem da Sociedade de Consumo. Eu havia comprado um celular novo apenas um mês antes...
-Mas...o que...como é que é isso? Nova ordem...É algo na política?
-Pobrezinha! Não te deixaram nem fazer os anos de escola? Que horrível! Ouça, a Nova Ordem da Sociedade de Consumo foi quando decidiram que o novo indicador de poder na nossa sociedade seria o bem material. Quando decidiram que Influência e Cargo seriam definidos por aquilo que a pessoa tem. Foi quando não-consumistas, como nós, passamos a ser excluídos do mundo.
Eu simplesmente não sabia reagir. Que terrível seria viver num lugar como aquele.
-Mas por quê? –inquiri.
-Porque o consumo fortalece a nossa economia. Se você não o pratica, está prejudicando o país.
Engoli em seco, sem coragem de perguntar mais nada. Sentei-me na sarjeta, a dois palmos do homem, e encarei as unhas dos meus pés, pintadas de azul. O lugar todo fedia. Homens e mulheres andavam rápido com grandes sacolas de compras.
Quando ergui novamente a cabeça o prédio era de cimento outra vez. Senti a cor esvaziar-se do meu rosto e olhei em volta, alarmada. Fora tudo muito assustador.
A temperatura caíra, as pessoas haviam voltado às suas roupas comuns e o lixo sumira. O homem também se esvaíra no ar, dando lugar às minhas obras , novamente espelhadas pela calçada. Até a mãe e a pequenina filha voltaram.
Não perdi tempo. Peguei uma tela em branco e comecei a desenhar. Levantei-me, buscando caixas e restos orgânicos na rua, no comércio ao redor. Usei-os como material. Colei, pintei, inventei paisagens daquele lugar distante e terrível que visitara, usando a sua mais evidente característica: O lixo e a poluição, consequências inevitáveis de um consumo desenfreado.
Uma multidão aglomerou-se ao meu redor, enquanto trabalhava, para observar-me compor aquele outro mundo, cruel e mais parecido com o nosso do que deveria. Um dos homens que ali estava aproximou-se de mim quando acabei:
-Garota, sou Fernando Álvaro, da galeria Álvaro & Dias. Essa sua pintura é a distopia mais aterrorizante que já vi. Tem interesse em expor conosco?
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Ecos do último coração irracional
Cerita PendekColetânea de contos e poemas dos mais variados temas e tamanhos.