Estas "notas" sobre a Bruzundanga ameaçam não acabar mais. Temo, ao escrevê-las tão longas como as Histórias de Heródoto, não virem elas, apesar disso, merecer a imortalidade da obra do viajante grego.
Contudo, se a posteridade não encontrar nelas algum ensinamento, e as desprezar, os contemporâneos do meu país podem achar nestas rápidas narrações de cousas de nação tão remota, moldes, receitas e meios para esbodegar de vez o Brasil.
Esbocei em um capítulo antecedente o tipo de mandachuva da Bruzundanga; agora, vou ver se debuxo o de um ministro daquele país.
A Bruzundanga, como o Brasil, é um país essencialmente agrícola; e, como o Brasil, pode-se dizer que não tem agricultura.
O regime de propriedade agrícola lá, regime de latifúndios com toques feudais, faz que o trabalhador agrícola seja um pária, quase sempre errante de fazenda em fazenda, donde é expulso por dá cá aquela palha, sem garantias de espécie alguma — situação mais agravada ainda pela sua ignorância, pela natureza das culturas, pela politicagem roceira e pela incapacidade e cupidez dos proprietários.
Estes, em geral, são completamente inábeis para dirigir qualquer cousa, indignos da função que a obscura marcha das cousas depositou em suas mãos. Pouco instruídos, apesar de formados, nisto ou naquilo, e sem iniciativa de qualquer natureza, despidos de qualquer sentimento de nobreza e generosidade para com os seus inferiores, mais ávidos de riqueza que o mais feroz taverneiro, pimpãos e arrogantes, as suas fazendas ou usinas são governadas por eles, quando o são, com a dureza e os processos violentos de uma antiga fazenda brasileira de escravos.
Todos eles são políticos, senão de destaque, ao menos com influência nos lugares em que têm as suas fazendas agrícolas; e, apoiados na política, fazem o que querem, são senhores de baraço e cutelo, eles ou os seus prepostos.
O pária agrícola (chamam lá colono ou caboclo), quando se estabelece nas suas propriedades, tem todas as promessas e todas as garantias verbais. Constrói o seu rancho, que é uma cabana de taipa coberta com o que nós chamamos sapé, e começa a trabalhar para o barão, desta ou daquela maneira. Não me alongo mais sobre a vida deles, porque pouco vivi na roça da Bruzundanga; mas posso asseverar que o trabalhador agrícola daquele país — esteja o café em alta, esteja em baixa, suba o açúcar, desça o açúcar — há trinta anos ganha o mesmo salário, isto é, dez tônios por dia, a seco, o que quer dizer, na nossa moeda, mil quinhentos e dois mil-réis, sem alimentação.
Todos os salários têm subido na Bruzundanga, menos os dos trabalhadores agrícolas. A parte povoada e cultivada do país tem já uma razoável população e talvez suficiente para as suas necessidades, mas, à vista do pouco lucro que os trabalhadores agrícolas tiram do seu suor, em breve deixam-se cair em marasmo, em desânimo, ou vêm a morrer de miséria nas cidades, onde se sentem mais garantidos contra o arbítrio dos fazendeiros e seus prepostos.
Como os grandes agricultores e seus parentes são políticos, e deputados, e senadores, e ministros, logo que sentem o êxodo dos naturais, começam a berrar que há falta de braços. Publicam uns fascículos desonestamente otimistas, onde há as maiores hipérboles laudatórias ao clima e à fertilidade da Bruzundanga e atraem emigrantes incautos.
Os primeiros que chegam com aquele fervor de quem "queimou os seus navios", trabalham vigorosamente e abarrotam de dinheiro os régulos das feitorias; mas já seus filhos não são assim. Logo se enchem do mesmo desânimo que os seus patrícios mais antigos, na terra, e começam a cair naquele marasmo, naquela apatia, naquela tristeza, que se evola, com um grande apelo à embriaguez sexual, das cantigas populares do país e cobre a roça da Bruzundanga de um sudário impalpável.
A manobra dos fazendeiros e outros agricultores é mudar, de quando em quando, a nacionalidade dos emigrantes que vão buscar. Assim, eles conseguem manter o fogo sagrado e ter trabalhadores abnegados.
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Os Bruzundangas
General FictionA obra é uma sátira da vida brasileira nos primeiros anos da Primeira República, Bruzundanga é um país fictício, onde havia, tal a como na Primeira República, diversos problemas sociais, econômicos e culturais, entre os quais os títulos acadêmicos...