Capítulo XVII: Ensino Prático

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Notando os grandes estadistas da Bruzundanga que o comércio do país estava nas mãos de estrangeiros, resolveram com todo o patriotismo retirar o monopólio da mercancia, quer por atacado quer a varejo, das mãos de estranhos ao país.

Os economistas tinham mesmo verificado que a exportação de dinheiro que os grandes e pequenos negociantes faziam para os seus países de origem, sobrepujava à do café; e, longe do comércio da nação enriquecê-la, empobrecia-a mais até do que a da venda aos estrangeiros da famosa rubiácea que constituía a sua riqueza.

Foi então que para sanar tão lastimável estado de cousas, para nacionalizar o comércio, alguns homens de boa vontade tomaram a iniciativa de fundar, em Bosomsy, um alto estabelecimento de instrução comercial, nos moldes alemães e americanos, isto é, inteiramente prático. Vou em rápidas palavras dizer-lhes como eles o projetaram e para tal, nada mais farei do que transcrever para aqui as partes essenciais do programa que estavam distribuindo quando saí da grande república e as conversas que com eles tive.

Era intuito dos fundadores da Academia Comercial banir do seu ensino todo o pedantismo, todo o luxo teórico; fazê-lo prático, moderno, à yankee. De tal modo o queriam assim que, ao fim de um curso de pequena duração, o aluno pudesse, sem dificuldades e hesitações, colocar-se à testa de uma loja e geri-la com o desembaraço e a segurança de velho negociante com vinte anos de prática.

Além de negociantes propriamente, a academia visava sobretudo formar magníficos caixeiros, magnéticos, com virtudes de ímã, capazes de solicitar, de empolgar, de atrair a freguesia.

Para a boa compreensão dos leitores que mal conhecem certamente os usos daquele país e os aspectos da sua capital, os exemplos locais de hábitos de comércio, que me foram fornecidos pelos fundadores da academia, serão por mim dados aqui com similares cariocas. Continuemos.

Os cursos da Academia Comercial da Bruzundanga não ficarão instalados em um enorme edifício, grandioso e inútil para os fins a que se destina, e sobremodo favorável à criação de um espírito de escola, de camaradagem, indigno da luta comercial. As aulas funcionarão em pequenas casas, situadas nas regiões da capital em que atualmente mais florescem os gêneros de comércio que os alunos pretenderem aprender.

Conversando com um dos iniciadores, tive ocasião de receber a confidência da metodologia própria ao estabelecimento. Lembro ainda que os exemplos são transferidos das cousas de lá para as daqui.

Assim, em uma espécie de Rua da Alfândega de Bosomsy, entre as equivalentes de lá às nossas do Núncio e São Jorge, será estabelecido o curso de venda ambulante de fósforos.

A aula ficará a cargo de um velho "turco" afeito ao negócio, cujas calças curtas, denticuladas nas extremidades, beijam a fugir os canos das botinas muito grandes e deixam ver, de quando em quando, dois bons pedaços de suas canelas felpudas.

Possuidor de voz roufenha e lenta mas penetrante e persuasiva, toda a manhã, o venerável catedrático, no centro de jovens discípulos, marcando o ritmo com uma varinha auxiliar, fá-los-á repetir uma, duas, mil vezes:

— "Fofo barato! fofo barato! duas caixa um tostão!"

Este curso durará seis meses, dando direito a um atestado de freqüência.

A aula de jornalismo (venda ambulante das gazetas) ia ser instalada em frente do popularíssimo quotidiano de lá — Bosomsy-Gazetto; e tencionavam os fundadores da academia realizá-lo de madrugada, admitindo um número restrito de alunos, sendo-lhe exigida a apresentação de atestados valiosos de que sabiam tomar bondes em movimento.

Os cocheiros de bondes (ainda eram de tração animal), os respectivos recebedores e os baleiros eram pessoas idôneas para passar o atestado.

A aula de "frege" cuja sede seria uma espécie de Largo da Sé de lá, ficará dividida em duas partes: cantata da lista e encomenda de pratos à cozinha.

Os discípulos serão obrigados a repetir em coro e na toada de uso, todo um pantagruélico e imaginário menu: "seca desfiada, caldo à portuguesa, arroz com repolho, feijoada Camões, tripas à portuense, bifes à Itália", etc., etc...

O lente, um exemplar de homem assim como um gordo proprietário de casa de pasto da Rua da Misericórdia, sentado a uma mesinha, coberta com uma toalha eloqüentemente imunda, dirá subitamente a um dos alunos:

— Traga-me um arroz e um bacalhau, "Seu" Manuel.

O discípulo correrá até ao fundo da sala e, com a voz clássica do ofício, gritará para a fantástica cozinha:

— Salta um "chim" e um bacalhau.

O tirocínio acadêmico durará um ano, conferindo o título de bacharel em lista cantada e dando direito ao uso de um anel simbólico.

Afora estes, haverá o curso de barbeiro, de botequim, de compra de ferro velho, e outros. O mais difícil, porém, há de ser o de armarinho, cujas aulas funcionarão em uma rua principal da cidade, em uma rua como a nossa do Ouvidor, e terão lugar em grandes salas, guarnecidas de assentos em anfiteatro, como nas grandes escolas superiores.

Alguma dama facilmente adaptável figurará como freguesa atendida, pelo professor, que perpetrará os lânguidos olhares de uso nesse tráfico, ajudando-a na escolha das fazendas, cortando o padrão com elegância e dizendo as frases amáveis, espirituosas e adequadas a tão alto comércio: "em si, toda a fazenda vai bem; quem quer cassa, caça", etc., etc.

Durará dois anos este curso e conferirá, ao aluno que o terminar, o grau de doutor em artigos de armarinho e boas maneiras.

Semanalmente, haverá duas aulas gerais, cuja freqüência será obrigatória aos alunos de todas as aulas; a de dança e a de cousas de carnaval.

Eis aí como, em linhas gerais, iria ser, conforme me disseram, a Academia Comercial da Bruzundanga.

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