As ondas de Porthminster estavam severas. O azul intenso e esverdeado do mar encontrava-se com o sol ao final do horizonte, resplandecendo em toda a sua glória. Ela fechou os olhos, se concentrou em sua respiração e sentiu. Sentiu os raios solares penetrando em sua pele, o frescor e o aroma único do mar; algo cítrico que a lembrava a bergamota, puro, salino, tudo misturado. Por meio dos ventos, foi possível que o cheiro das árvores que a circundavam chegassem a ela, e penetrassem em todo o seu ser. Anastasia inspirou profundamente, e expirou. Como ela amava aquele lugar. Como ela amava o mar, como amava as suas ondas desenfreadas e livres que vagavam para onde quisessem. Como amava aquela areia sob seus pés, quente, macia e confortável, abraçando-os. Aquele sempre fora o lugar dela, e sempre seria, como seu pai lhe dissera diversas vezes, antes de partir.
George Fitzgerald, empresário do ramo de pesca - prática que perdurava em sua família há gerações -, deixara o mundo muito cedo, aos 37 anos. Annie, nesta época, com apenas nove anos de idade, já era órfã de mãe, a qual morreu no parto ao dar à luz ao seu irmão natimorto, três anos antes da morte de seu pai. Ela possuía vagas lembranças da mãe e dos momentos que compartilhavam juntas; um afago nos seus cachos sempre emaranhados e rebeldes, abraços quentinhos e aconchegantes, e uma voz doce e melodiosa, a qual cantava para ela quase todas as noites, segundo seu pai. Anastasia possuía o mesmo tom e estilo de cabelo de Hailey, além do nariz longo e afilado, mas seus olhos, aqueles olhos de um âmbar intenso com bordas esverdeadas, eram de George. Ela amava o fato de ter um pedacinho dos dois consigo, para assim, nunca perdê-los em sua memória, para que toda vez que visse sua imagem refletida, lembrasse de George e Hailey, seus pais, pessoas as quais a amaram primeiro e sempre a amariam, apesar de onde estivessem.— Oh, Petúnia, cuidado. — Seu foco foi direcionado à bolinha de pelos sob seus pés, que acabara de emitir um som baixo e sofrido.
Entre sua pelagem branca, Anastasia notou a cor escarlate próxima a sua patinha, e a carregou no colo, preocupada.— Machucando-se em pedras novamente, minha princesa? — Annie analisou a pata da maltês, e a aconchegou junto ao seu colo, com cuidado para não machucar a pata, e começou a embalá-la, depositando beijos breves em sua cabeça. — Mamãe vai levá-la para casa e...
— Annie! — Anastasia virou o rosto, e encontrou sua aia vindo da enorme mansão.
— Petúnia se machucou novamente, Trudy. Estou arrasada. — Disse quando a aia se aproximou. — Vou levá-la para dentro, banhá-la e...— Sir Fitzgerald mandou a senhorita apressar-se pois terá uma visita às onze. — Ela disse ofegante, tirando a cachorrinha do embalo de Annie. — Deixe que eu cuido dessa danadinha.
A jovem bufou.
— Mais um?
— Sim, madame.
— Meu tio não desiste. — Seu semblante estava cansado.
Desde que completara 17 anos, o tio a sobrecarregava com pretendentes de todos os cantos da cidade e condados próximos. Ele queria casá-la para se livrar dela, pois uma vez que estivesse casada, ela sairia da propriedade de onde nasceu, e de sua pseudoproteção, e nunca mais seria problema dele. Apesar de desejar com toda veemência sair de suas garras, não queria por meio do casamento.
Ela não sentia paixão, atração, ou aquele tipo de amor por homens. Desde criança, ficava confusa em relação ao que sentia, e não podia compartilhar com ninguém, porque não era algo que se via. Com o avançar da idade, foi entendendo melhor que o mundo era cruel com esse tipo de gente; elas eram levadas para clínicas para serem tratadas como se fossem doentes, eram torturadas e massacradas, tanto física quanto psicologicamente, isso na melhor das hipóteses. E, na pior, eram mortas a sangue frio, sem o mínimo de piedade.
Então, na atual perspetiva, ela nunca se abrira para ninguém, nem mesmo para Trudy, que praticamente a criou a vida inteira. Seu tio, Brian, após o falecimento de seu pai, foi designado como seu tutor, pois era o único parente vivo que ela possuía. Os dois irmãos nunca se deram muito bem, pois George era o mais velho e herdaria o grande império de pesca de St. Ives, enquanto que Brian estaria apenas nos bastidores da gerência, incumbido de outros afazeres. Mesmo quando crianças, os pais dos irmãos Fitzgerald já os tratavam de modos distintos, com toda a atenção e zelo para seu herdeiro, enquanto que o mais novo não recebia as mesmas regalias. E, para completar, a bela mulher de cabelos cor de cobre fora a paixão juvenil e platônica de Brian. Os dois eram melhores amigos, e Hailey sempre o vira como um conselheiro e confidente. Os dois cresceram juntos, pois os pais de Hailey Beckmann moravam perto da Mansão Fitzgerald, em frente à praia Porthminster, antes de venderem a casa e rumarem para a América, após o casamento da filha.
Mas foi em George, e não em Brian, que Hailey encontrou o amor de sua vida. Brian era tempestuoso, levado, explosivo. Já George, era o irmão tímido, calmo, introspectivo, que exalava um ar misterioso. Com seis anos de diferença entre George e Hailey, ele passou muito tempo a vendo como apenas uma menina. Enquanto ela e Brian ralavam o joelho e subiam em árvores na surdina, ele já era preparado para ser o maior dono da rede de pesca da cidade. Com o passar do tempo, e o debute de Hailey, ela começou a provocá-lo, propositalmente. Ela sempre quis que ele reparasse nela como ela reparava nele; em como seus cabelos castanhos escuros estavam sempre alinhados, em como seu sorriso era tímido e quase imperceptível, de tão sútil, e em como seus olhos denunciavam suas mais sinceras emoções, enquanto sua face se mantia pétrea.
Certa noite em um baile na sua casa, após uma dança de salão, Hailey tomou a iniciativa, dizendo que estava mal e precisava tomar um ar, então, cavalheiro do modo que era, George a acompanhou. Hailey aproveitou a deixa e o encurralou contra a estufa da família, beijando-o vorazmente, surpreendendo-o de todos os modos. George ficou estupefato com aquela jovem mulher o beijando com tanta paixão, e retribuiu ao beijo na mesma intensidade. Após o momento dos dois, Hailey o deixou intrigado de diversas formas, tanto pelo modo como ela o tratou - de igual para igual -, quanto pela sua espontaneidade em questões relacionadas à paixão. Depois dessa noite, ela o tratava comumente, como se nada houvesse acontecido entre os dois. Isso deixava George confuso e perdido, ansiando por uma satisfação, por ela. Eles tiveram mais momentos de conversas e beijos roubados, e em Hailey, George finalmente se libertou e foi a pessoa que de fato era. Com seu amor, ela deu maior leveza a vida dele, sagacidade e paixão. Ele a venerava, cada pedacinho dela, fazia com que ela se sentisse linda, especial, e o principal, amada. Amada de um jeito único e irrevogável. Ele era seu vassalo, enquanto ela era sua suserana.
E Brian, por sua vez, odiou isso. Pois mais uma vez em sua vida, ele fora excluído, e se ressentiu fortemente dos dois. E esse era um dos maiores motivos para ele tratar Anastasia indiferente ou grotescamente. Ela era o fruto do amor dos pais, do homem que ele odiava, que lhe roubou tudo - em sua concepção -, e da única mulher que ele amou na vida, que o deixou para ficar com seu irmão.
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Intempérie
רומנטיקהUma cortesã que não teve escolha, que carrega consigo marcas tanto físicas quanto psicológicas da realidade a qual é obrigada a viver. A cada dia ela está mais quebrada e destruída por dentro, pois a realidade a corrói, e tenta fincar com todas as g...