Doce Criatura

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[Aviso de gatilho: morte explícita. Tema: Criatura mágica]

Escutai! Escutai o choro longínquo da criatura. O choro melancólico da criança que sabe que é refém do sofrimento do próprio destino. Escutai sua dor em cada grito agudo e solitário, enquanto os pássaros da floresta fogem, incapazes de lidar com o lamento infante.

Doce criatura, que entre arbustos corre... por que ela chora? Por quem ela tanto lamenta a morte?

Atendei ao chamado. Ela implora por um consolo, por um afago. Esquece as armas, ignora os avisos, não acredite no mito dos antigos. Atendei ao chamado, e apenas ele, pois a criança te chama.

Atravessai o vilarejo, entrai na floresta. O dia está findando, e as árvores começam a perder o brilho dourado. A mata começa a perder a diversidade de cores, tornando-se apenas verde e preta e fria.

Sinta o cheiro. O aroma que fica impregnado em suas narinas, anunciando que ela está mais próxima do que imaginas. Os animais correm para a direção oposta ao cheiro, das pequenas lebres aos cervos de chifres robustos. O cheiro frio das árvores vai dando lugar a algo quente, espumante...

Tentador.

Como se todos os chamados convergissem para aquele único ponto, no coração da mata fechada. E logo ali ela há de estar.

Vê! Pousai os olhos na mancha negra camuflada entre os arbustos. E mesmo que o sol ainda esteja se pondo, não vai ser fácil identificar qualquer silhueta do verdadeiro filho do breu.

E ele te observa, como se estivesse observando a própria escuridão. Não há mais choro, lamento ou dor. Tu não encontraste a criatura. A criatura te encontrou, e ela estava esperando apenas por você.

O breu vai ficando cada vez maior. Lentamente. Como um sussurro, o arrepio sensual percorre o seu corpo, até que sua visão esteja inteiramente possuída pela criatura em toda sua grandiosidade.

Seus pelos mudam de cor à medida que ela se aproxima. Do preto para o azul, do azul para o dourado, do dourado para o violeta. Um infinito caleidoscópico que contém todas as estrelas de todas as galáxias.

Toque. Afunde suas mãos nos astros do universo enquanto eles consomem uns aos outros em toda sua enganosa infinitude. Sinta. Sinta a realidade voltar para floresta agora escura.

Sinta os dentes ensanguentados da criatura afundarem em sua carne, enquanto seus pulmões são preenchidos pelo sangue que já escapou de suas veias. Sinta a dor e o terror dos olhos amarelos penetrantes, como se eles também fossem vítimas de seu próprio encantamento.

Todas as histórias que transpassaram os séculos eram enganosas. Nada poderia assemelhar-se àquela pequena, doce e infeliz criança que devorava seu corpo.

E então, percebendo o que fez, a criatura joga o corpo no chão.

Observa. Como se estivesse mais uma vez observando o próprio breu que carrega.

A angústia cresce cada vez mais em sua garganta com gosto de fel, e ela escuta os batimentos da sua vítima cada vez mais escassos. Até pararem.

Silêncio sepulcral. E a criatura chora. Chora como a criança que acaba de perder a mãe. Como se tivesse consciência de que é refém do próprio destino. E os pássaros da floresta voam assustados para longe da cena.

Doce criatura, que entre arbustos corre... De quem será que ela tanto lamenta a morte?

Epifanias da RainhaOnde histórias criam vida. Descubra agora