Capítulo Um: A Casa do Satã

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Os senhores não encontrarão este relato em seus livros de história. Não obstante, não é um apócrifo. Escrito à moda romântica, é embasado nas sensações do autor. Felizmente ou infelizmente, isso não o torna menos real. Se por mal ou se por bem, sou incapaz de afirma-lo com acurácia. Tudo que sei são dos fatos.

E eles, começam assim:

Era a tarde do dia 27 de Fevereiro de 1849. O sol ainda estava alto. A estrada se cobria de uma espécie de bruma muito densa e opaca. O viajante que vinha de terras longínquas poderia se confundir com aquilo. Poderia até pressupor noções equivocadas sobre o clima da cidade.

Mas só era poeira. Uma nuvem composta do pó que os cavalos erguiam. O chão era do solo mais arenoso e fino o possível. Tudo ficava branco-marrom-acinzentado.O cheiro me era novidade. Coçava-me o nariz.

-Atchim!

-Bom dia, senhor! - Respondeu o cocheiro.

-Bom dia, São Paulo!

Sim, essa foi minha primeiríssima impressão da cidade.

Quando enfim fomos marchando perto do centro, espiei pela janela da carroça.

Passamos por cima de uma ponte de madeira e ao lado de uma capela e um cemitério. Chegamos numa grande área aberta. Havia um gramado e um caminho estreito de cascalho. E ali se erguia uma enorme casa de dois andares. Era o solar onde passaria os próximos cinco anos de minha vida. Vulgo, a república.

Estacionou a carroça. Bocejei e espreguicei. Não cria que uma semana já havia passado.

Tentei ficar de pé. Bati forte a cabeça no teto. Me curvei com a mão na nuca.

-Au! - O cocheiro apareceu e tentei disfarçar.

Peguei minha mala e minha maleta, uma em cada lado. O peso era tão diferente que meus braços pareciam uma gangorra. Segurava o chapéu numa mão. Também estendi meu paletó sobre o antebraço. Abri o primeiro botão da camisa. Fazia calor. Caminhei com vagar e parei na beirada. O salto até o chão pareceu grande. Logo, o cocheiro estendeu seus braços, como se me auxiliasse.

Sempre fui do pensamento de que quem usa da ajuda alheia para descer do carro são as damas.

E foi por isso mesmo que dei de cara com o chão.

-O senhor está bem?

-Melhor impossível! - Levantei-me num salto e limpei a grama de minha roupa.

-Precisa de--

-Estou bem. E grato pelo serviço! Quanto lhe devo?

-Já acertaste a quantia.

-Estamos quites?

-Não quer que lhe apresente o local? - Apontou à casa.

-Prefiro seguir sozinho.

-Então vou embora!

-Boa viagem! - Subiu no veículo e se retirou.

Encarei a silhueta do prédio por mais alguns segundos. Me faltava a coragem para prosseguir. Abandonava muita coisa. Conhecia muitas outras. Já largara a mala no chão, quando vi alguém abrindo a porta principal. Nossos olhares se cruzaram.

-...

-...

-O senhor...Chama-se Sales?

-O mesmo...

-...

-Ah, pode me chamar de Fernando! - Tomei a mala. Subi os degrauzinhos de acesso e o cumprimentei. -Prazer em conhecê-lo!

A Casa do SatãOnde histórias criam vida. Descubra agora