Era Março. Meus diários não registram a data exata. O fato é que as aulas já se desenrolavam há quase um mês. E eu tinha de me acostumar com os meus colegas.
-Bom homem!-Azevedo veio até mim.-Compra tabaco para nós?
-Sim! E alguma literatura também, por favor!-Guimarães berrou lá atrás.
-Bons senhores, apesar da minha IMENSA apreciação pelas calçadas pessimamente iluminadas desse burgo, pelo adorável odor de esterco equino que recende das avenidas e pela dificílima subida até o comércio, terei de recusar vossa oferta!-Tentei sair, Azevedo puxou meu braço.
-Sales--
-Tenho trabalho a fazer, amigo!
-Saaaleeees!-Guimarães cantou meu nome e ergueu duas garrafas de vinho.-"Nós temos trabalho a fazer!"
Fitei Azevedo no fundo dos olhos e cochichei.-É sério! Não sei quanto a vocês, mas eu não pretendo atrasar meu primeiro ano de Ciências Jurídicas! Especialmente não por duas ou três garrafas de álcool!
-Senão por isso, pelo quê? Todos tem seus demônios, Sr.Sales! PICK. YOUR. POISON.¹
-Eu já disse que falo sério, Azevedo! Não me chateie.
-Oh, então você fala sério?
-Sim.
-Quão sério?
-Morbidamente sério!
-Oh, estás dizendo que morreria por um bocado de fumo? Ousado! Posso garantir-te isso! Haha! Ouçam só, gente, ele prefere morrer a ir!-Soltou a voz.-Só um contra: se morresse, seu curso não duraria muito!
Fechei a mandíbula e apertei minha mão com toda minha força. Como me segurei para não socá-lo!
Suspirei.-Às vezes, Azevedo, nem precisas de veneno!-Apenas chutei uma das garrafas de Guimarães, sem muita força. Ela só tombou.
-Ei!-O fulvo desgostou.
-Ora, Sales! Vá! Minha predisposição a devaneios não é o mesmo que boêmia!-Azevedo reagiu.
-Contudo, tem parecido muito com ela!-Saí, batendo porta e pé.
***
Já começava a escurecer. Estava emburrado, zangado com tudo e todos. Cheguei na tal loja. Abri a porta de vidro com tudo. O sininho tocou. Alguém estava agachado por trás do balcão. Só o laço de seu avental era visível. Se ergueu de uma vez, batendo a nuca no balcão nesse processo.
-Vo--
-Boa noite, seja bem vindo à Livraria Rouxinol!-Ela falava, sempre sorridente.-Contamos com mais de mil volumes! Em que posso ajudar-te?
Só então pude reparar no seu rosto, em sua linda forma arredondada. Seus lábios carnudos em tons de roxo. Seus olhos negros como jabuticabas e com cílios longos e curvos. Seu nariz alargado, precisamente encaixado no rosto. Seus cabelos repartidos escorriam até o fim da omoplata e eram muito bem cacheados. Sua pele era oleosa e nada lisa, não vou mentir...A verdade é que ela era linda! Estupenda! Toda sua postura era de uma deusa grega! E a pele, era o detalhe mais bonito. Mesmo que isso gere controvérsias,
pois a acne atacava a…
Uma pele negra.
Ela juntou suas madeixas e amarrou o cabelo, dizendo:-O que foi!? Viu algo engraçado?
Eu devo ter ficado um minuto olhando para ela, sem me tocar do quão indelicado estava sendo.
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A Casa do Satã
Historical FictionFoi no ano de 1849. Fernando Sales estava ansioso pela oportunidade de estudar Direito em São Paulo. O que ele não sabia era o quanto seu colega de república, o poeta ultrarromântico Álvares de Azevedo, o atrapalharia em seus objetivos; nem o mistér...