Capítulo Dois: Aproveite o dia

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Era Março. Meus diários não registram a data exata. O fato é que as aulas já se desenrolavam há quase um mês. E eu tinha de me acostumar com os meus colegas.

    -Bom homem!-Azevedo veio até mim.-Compra tabaco para nós?

    -Sim! E alguma literatura também, por favor!-Guimarães berrou lá atrás.

    -Bons senhores, apesar da minha IMENSA apreciação pelas calçadas pessimamente iluminadas desse burgo, pelo adorável odor de esterco equino que recende das avenidas e pela dificílima subida até o comércio, terei de recusar vossa oferta!-Tentei sair, Azevedo puxou meu braço.

    -Sales--

    -Tenho trabalho a fazer, amigo!

    -Saaaleeees!-Guimarães cantou meu nome e ergueu duas garrafas de vinho.-"Nós temos trabalho a fazer!"

    Fitei Azevedo no fundo dos olhos e cochichei.-É sério! Não sei quanto a vocês, mas eu não pretendo atrasar meu primeiro ano de Ciências Jurídicas! Especialmente não por duas ou três garrafas de álcool!

    -Senão por isso, pelo quê? Todos tem seus demônios, Sr.Sales! PICK. YOUR. POISON.¹

    -Eu já disse que falo sério, Azevedo! Não me chateie.

    -Oh, então você fala sério?

    -Sim.

    -Quão sério?

    -Morbidamente sério!

    -Oh, estás dizendo que morreria por um bocado de fumo? Ousado! Posso garantir-te isso! Haha! Ouçam só, gente, ele prefere morrer a ir!-Soltou a voz.-Só um contra: se morresse, seu curso não duraria muito!

    Fechei a mandíbula e apertei minha mão com toda minha força. Como me segurei para não socá-lo!
Suspirei.

    -Às vezes, Azevedo, nem precisas de veneno!-Apenas chutei uma das garrafas de Guimarães, sem muita força. Ela só tombou.

    -Ei!-O fulvo desgostou.

    -Ora, Sales! Vá! Minha predisposição a devaneios não é o mesmo que boêmia!-Azevedo reagiu.

    -Contudo, tem parecido muito com ela!-Saí, batendo porta e pé.

***

    Já começava a escurecer. Estava emburrado, zangado com tudo e todos. Cheguei na tal loja. Abri a porta de vidro com tudo. O sininho tocou. Alguém estava agachado por trás do balcão. Só o laço de seu avental era visível. Se ergueu de uma vez, batendo a nuca no balcão nesse processo.

    -Vo--

    -Boa noite, seja bem vindo à Livraria Rouxinol!-Ela falava, sempre sorridente.-Contamos com mais de mil volumes! Em que posso ajudar-te?

    Só então pude reparar no seu rosto, em sua linda forma arredondada. Seus lábios carnudos em tons de roxo. Seus olhos negros como jabuticabas e com cílios longos e curvos. Seu nariz alargado, precisamente encaixado no rosto. Seus cabelos repartidos escorriam até o fim da omoplata e eram muito bem cacheados. Sua pele era oleosa e nada lisa, não vou mentir...A verdade é que ela era linda! Estupenda! Toda sua postura era de uma deusa grega! E a pele, era o detalhe mais bonito. Mesmo que isso gere controvérsias,
pois a acne atacava a…
Uma pele negra.
    Ela juntou suas madeixas e amarrou o cabelo, dizendo:

    -O que foi!? Viu algo engraçado?

    Eu devo ter ficado um minuto olhando para ela, sem me tocar do quão indelicado estava sendo.

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