27 - dia ideal

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01/04/2021

No meu dia ideal, eu estaria deitada em uma caixa de madeira; meu corpo [que dizem ser] pequeno, quase perdido em meio a mil belas flores (todas muito mais belas do que eu jamais fui e jamais serei): as declarações de amor que eu sempre quis em vida, mas que precisei morrer para receber.

Eu estaria com um vestido branco para continuarmos fingindo, até mesmo em morte, que eu sou pura e boa - "a salvação da família" -: tudo aquilo que nunca fui em vida, pois estava ocupada demais sendo uma doente mental que envergonha a família, uma decepção, aquela pessoa que é difícil demais de lidar, dentre muitos outros elogios que já ouvi.

A maquiagem cobriria meu rosto sofrido, mas também os braços e pernas: é preciso esconder aquilo que ninguém consegue tentar compreender, as marcas que revelam a minha loucura e expõem uma imperfeição que a minha família teme que se torne pública. Até mesmo o meu cadáver teria seus traços apagados para não ser uma vergonha para ninguém. Ao menos, sem vida e vazia, eu estaria mais próxima da boneca manipulável que sempre quiseram que eu fosse).

Meus ouvidos escutariam as mais belas palavras, todas aquelas que eu sempre sonhei em ouvir. E, de repente, todos se lembrariam [temporariamente] do tanto que me amam - mas se esquecem de que o amor só é fértil quando pode ser vivido. Eu receberia carinho e presença mais do que tive em todos os anos da minha vida. Diriam "queria ter ficado sabendo antes, ter percebido antes, porque ela nunca falou nada? Queria ter evitado isso". Essas palavras tolas sairiam da boca deles como se fizessem qualquer sentido, como se dentro de todos ( c a d a   m í s e r a   p e s s o a ) não tivesse o poder para evitar suicídios: empatia, cuidado, apoio, escuta, presença (ainda que de longe). Diriam isso como se eles tivessem se dado a chance de perceberem meus sinais: é preciso ter um mínimo de presença na vida de alguém e se importa só um pouquinho pra saber como ela se sente. Além do mais, o que mudaria se eles percebessem? Quem quer ter que lidar com toda a minha negatividade, a preguiça, a falta de deus ou de vergonha na cara, a decepção?

Ninguém quer se sentir frustrado, impotente e incapaz vendo o outro se destruir e piorar e se afundar cada vez mais. Quem vai querer amar alguém que te faz temer e se perguntar, com angústia, quando vai ser o dia que vai encontrar o corpo frio e ensanguentado da pessoa amada no chão do banheiro? É difícil desejar a vitória de alguém, mas, constantemente, só ver uma quase que eterna ruína em todas as batalhas: decepções, frustrações e expectativas quebradas. Na realidade, todos que estariam ali têm razão: é muito mais fácil amar um corpo inanimado do que uma viva alma complexa e quebrada demais. Mas de que isso adiantaria para mim? O amor só é aproveitável quando pode ser vivido - e essa oportunidade nunca me foi dada...

Quando fossem carregar o meu caixão, eu não me preocuparia: meu peso, diminuto e tão insignificante quanto a minha pessoa, faria com que parecesse que eu nem estou ali (o menor incômodo possível). E a dor que carregariam no peito pela minha partida (se é que haveria alguma...) logo iria embora - da mesma forma como todos me superam tão rápido demais quando nos afastávamos em vida. A minha morte não seria dolorosa; afinal, porque minha ausência faria qualquer diferença se nem mesmo a minha presença o faz?

Quando o evento acabasse e todos se fossem, o silêncio reinaria no lugar. Se isso fosse possível, cada pequenina célula do meu corpo já desfalecido entrariam em um estado de confusão digno de Babel: mesmo mortas, ficariam em êxtase por presenciarem a paz pela primeira vez; por outro lado, haveria um desilusão ao constatar o ato que foi necessário para alcançar essa paz - e o pior: eu nem mesmo poderia apreciar essa sensação, porquanto a morte já tomou meu corpo.

O farfalhar das folhas velhas e caídas das inúmeras árvores do cemitério seria o único som que se ouviria. O vento seria responsável por levar para longe todas as flores outrora postas acima de mim (o primeiro e único amor que recebi se afasta...); é possível que elas nunca sejam repostas. Os dias se passariam e o tempo - lento, mas apressado - seria meu único companheiro. Nem mesmo os vermes se arriscariam a me petiscar: tão podre que sou, nem para isso serviria. Sorte a minha que, em vida, tive solidão o suficiente para me acostumar com ela e não estranhá-la após a morte.

A morte... esta já corria em minhas veias desde os meus primeiros segundos de vida. Aquela que sempre me vigiou de perto e me acompanhou finalmente se encontrou comigo. Me estendeu sua mão pálida e esguia e me ofereceu um abraço confortável: um perigoso conforto que me sufocou e retirou as amarras que me prendiam no lugar onde eu nunca deveria ter estado. "Até que enfim", ela me diria com sua voz rouca, "você fugiu de mim por tempo demais enquanto ignorava mesmo os mais óbvios sinais".

Enquanto seguíamos com Caronte, a morte afaga minha cabeça enquanto elogia minha coragem de desafiar o meu destino indubitável. Mas também não se esquece de apontar os estragos que minha petulância provocou e todo o trabalho que teve que ser feito para contornar as interferências que a minha inadequada presença causou. "Até que enfim", ela repete com um tom de tranquilidade e um discreto sorriso, "tudo vai ficar bem".

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⏰ Última atualização: Oct 23, 2021 ⏰

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