Prólogo

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Antes de tudo.

Em algum lugar do passado...

O medo irradiava dos pés à cabeça, em cada pessoa que olhava a procura de um rosto familiar. Durante os seus dozes anos de vida nunca ficou perdido, tanto a mãe quanto a babá o mantinha perto, mas desta vez a rebeldia foi longe demais.
Não entendeu o porquê de ter que ir de ônibus quando poderia ter ido de carro com os pais. Enquanto Ângela estava distraída em entregar a passagem ao motorista, o menino simplesmente saiu de fininho e correu o mais rápido que suas pernas magrelas e compridas permitiram quando ouviu seu nome ser chamado várias vezes, até não ouvir mais.

Estava arrependido pelo ato, não era a atoa que sua mãe o reprendia direto, não era à toa que ela o comparava ao irmão mais velho. Ansel, o perfeito, o orgulho de todos. Boas notas, ótimo aluno, ótimo filho, sempre bom em tudo, enquanto ele se tornou a versão contrária do irmão.

Gael não tinha os olhos claros, a pele pálida e os cabelos loiros que toda sua família Conata carregava nos genes, ele era pardo, o cabelo escuro e rebelde tinha alguns fios dourados, os olhos lembravam cor do mel. Desde cedo percebeu as diferenças e então, quando completou dez anos de idade os pais o chamaram para uma conversa, na qual parte do seu mundo desabou, virou pó e formou nós na sua mente egocêntrica de criança: ele era adotado. Depois da descoberta, tudo foi ladeira abaixo.
O medo se aquietou no peito ao pensar no irmão, com toda certeza o ato de rebeldia deixaria seus pais preocupados. Apenas precisava se esconder um pouco mais, para ganhar tempo.

Em um canto afastado de toda multidão da rodoviária, ele se sentou, torcendo o nariz para o chão sujo. O dia frio o fez esconder as mãos nos bolsos do moletom quente, uma hora alguém o encontraria.

— Oi.

A voz fina atraiu seus olhos para a menina sentada a pouco menos de um metro de distância, não parecia ter mais que oito anos, usava um par de chinelas surradas e pequenas demais para os pés, uma calça fina que mal chegava aos tornozelos com alguns rasgos, uma caixa de jujubas estava sobre o colo, os cabelos cacheados estavam amarrados e apesar do frio, ela não estava agasalhada, as mãos seguravam os braços, na tentativa de se esquentar.
Um bolo se formou em suas entranhas, uma sensação nova e ruim se instalou dentro do ser do menino Gael ao fitar os olhos arregalados daquela garotinha, olhos castanhos cheios de frio, fome e algo a mais que ele não conseguiu decifrar.

— Oi. — Murmurou se sentindo envergonhado, engolindo em seco. Analisando a situação da garotinha seus olhos marejaram, mal sabia o que estava acontecendo dentro de si.

— Quer comprar um doce?

A garganta ficou seca, a garotinha insistia em olhá-lo, esperando por resposta, alheia a tudo. O que ela estava fazendo sozinha ali? Onde estavam seus pais? Talvez ela não tivesse, seu pai conversou com ele uma vez sobre isso.
A consciência começou a pesar, enquanto ele fazia birra e implicava com tudo que os pais davam a menina mal tinha blusa de frio para usar. Os pequenos tremores comprovava que ela estava com frio.

— Você está perdido?

Novamente a voz o fez sair dos devaneios, balançou a cabeça confirmando.

— Olha menino arrumado, eu posso te ajudar a procurar sua mãe se você comprar uma jujuba.

Gael quase riu do jeito que ela o chamou, mas controlou a boca, sua mãe havia ensinado para nunca rir de pessoas assim.

— Tudo bem. — Pensou que poderia ser ele no lugar da menina, caso não encontrasse Ângela.

— Como vou saber se está falando a verdade?

Os dedos dele tateou algo dentro do bolso, então teve uma ideia.

— Olha, eu tenho esse anel. — Estendeu uma embalagem com um doce e um anel de plástica dentro, era a sensação do momento entre as crianças. — Meu irmão diz que sou muito velho para ficar comprando essas coisas, mas eu gosto e esse foi o último que encontrei na banca. Então quando encontrarmos a Ângela você me devolve e eu compro uma jujuba.

— Você promete?

Seu pai o ensinou a nunca fazer promessas que não conseguiria cumpri-las. A menina o olhava com expectativa.

— Prometo. —A criação da promessa o fez refletir. – Mas, por que quer tanto que eu compre uma jujuba?

A menina baixou a cabeça, ele se culpou pela curiosidade natural despertada.

— Se eu e meu irmão não vendemos nada, nosso pai fica muito bravo.

— Aonde este seu irmão?

— Não sei.

Com cuidado ela pegou o objeto das mãos dele, os dedos dela estavam gelados feito picolé quando tocou a mão dele. Seus dedos alcançaram o rosto da menina, o erguendo. Os olhinhos cheios de lágrimas o deixaram aflito, Gael abriu um sorriso gentil. Lembrou que seu pai fazia assim quando sua mãe ficava triste e ele dizia que ficaria tudo bem.
A confusão causada pelos seus sentimentos o deixou desnorteado. Sem pensar duas vezes retirou seu moletom e estendeu para ela.

— Toma. — A garotinha hesitou. — Pode pegar depois você me devolve, não estou com frio.

Ele trincou o maxilar quando o vento frio soprou, provavelmente na bolsa tinha mais blusas. Rapidamente a menina pegou e vestiu um pouco atrapalhada por conta da caixa, o moletom ficou folgado, batendo nos joelhos magrelos. Gael estendeu a mão, num convite silencioso, desta vez ela não hesitou e um sorriso tímido surgiu no rosto dela pela primeira vez. Para uma criança ela tinha um sorriso bonito, pensou.

— Quantos anos você tem?

— Oito.

— Vamos. — A mão dela, apesar de fria era macia. Queria permanecer ali, perguntar mais sobre ela.

Os dois começaram a andar pela multidão, mas logo alcançaram uma corrida que nem ele viu sentindo de o porquê estarem correndo pela rodoviária, trombando em algumas pessoas. Em um momento Gael virou para trás a vendo sorrir, segurando a caixa em meio aos movimentos. Então seu corpo bateu em algo, o parando bruscamente, um gritinho aguda escapuliu da boca da menina quando ela trombou nele.

— Ai!

— Pelo amor de Deus menino! Quer me matar do coração?

Ângela olhou furiosa para o menino, sentindo o alívio percorrer suas veias, ao seu lado um guarda reparava na cena, mas de olho na menina maltrapilha. Gael se deu conta que, apesar da trombada ainda segurava a mão da garota, rapidamente a soltou e abraçou a babá, aliviado. Todos os resquícios de rebeldia esvaindo do seu corpo. Prometeu a si mesmo que nunca mais iria fugir.

— Vamos, vamos! O ônibus nos espera.

A única chance que ele teve foi ergue a mão em um breve aceno para a menina antes que o guarda a enxotasse do lugar feito cachorro de rua, Gael sentiu a raiva percorre seu corpo magrelo, não deveriam tratar uma criança assim. Mas, antes que pudesse fazer algo, Ângela o empurrou para prosseguir no meio da multidão. Pela última vez olhou para trás, seus olhos encontraram o dela e, naquele momento o seu coração de criança partiu, lágrimas grossas escorriam pelo rosto magro da menininha. Novamente conseguiu sair do aperto da mão da baba em seu braço, mas parou. O guarda segurava a arrastava para longe, se ele fosse até ela poderia ser pior.

A raiva não cessou quando entrou no ônibus, pela janela tentou encontrar a menina, sem sucesso. Mas por dentro se sentiu satisfeito por deixar a blusa de frio com ela, provavelmente no bolso havia mais do que o anel de plástico, uma quantia suficiente que compraria mais que uma jujuba. Foi o seu pai que deu, antes de sair de casa, dizendo que era para a viagem.

Se encostou na poltrona, perdido em pensamentos. Lembrando que não havia dito seu nome à menina.

Antes, agora e depois.Onde histórias criam vida. Descubra agora