Clínica

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Julia narrando.

Resmungo quase chorando quando meu despertador toca. É uma merda ter que acordar cedo em pleno fim de semana, mas tenho obrigações, infelizmente. Vou visitar meu pai em sua clínica, hoje sem a Jade, minha melhor amiga. Não gosto de ir sozinha para lá, sempre fico mal depois e gosto de alguém segurando minha mão.

Tomo um banho quentinho para tentar acordar, me olho no espelho ainda de toalha e sorrio vendo meu corpo. O gostosão surtado deixou vários chupões e minha bunda vermelha. Pena que o pós-sexo foi deprimente, mas agora tenho história para contar, pelo menos.

Me sento em frente à minha penteadeira/escritório/biblioteca, olho desmotivada para as manchas; não vão sair com corretivo e base, o jeito é apelar para o velho método: cachecol e blusa de gola alta. Apenas fica um pouco suspeito pelo enorme calor que faz, mas quem vai pensar que é isso?

Resmungo morrendo de calor, estaciono em frente à clínica e pego as sacolas que sempre trago para meu pai, telas e coisas de pintura. Minha mãe, que não gostava dele e apenas casou com ele por ter engravidado de mim, acabou torturando-o mentalmente durante anos, fazendo sua doença se agravar e deixá-lo no estágio em que está hoje. Ele tem esquizofrenia. Ele diz que escuta várias pessoas; ele descrevia para mim quando eu era pequena, mas com o tempo ele apenas resumiu para "as vozes". Em certo momento, ele diminuiu a quantidade de falas e agora se expressa através da pintura.

Minha casa está cheia dos quadros que ele me dá de presente. Ele ama pintar e gosto de vê-lo feliz assim; aqui, com a rotina e tudo mais, ele vive bem. A enfermeira já me reconhece de longe e corre vindo me ajudar com as coisas.

— Quantas telas! O senhor Hector vai adorar — ela diz sorrindo, e eu assinto.

— Também trouxe as tintas das cores que me pediu. Como ele está?

— Olha, dona Júlia, na mesma. É receptivo com as pessoas, mas ainda com seu jeito dele. Suas risadinhas e conversas sozinhas voltaram. Ele não quer mais tomar o remédio.

— Juli — escuto a voz dele atrás de mim e sou surpreendida com seu abraço. Ele faz os desenhos de círculos em minhas costas com o mesmo hábito de sempre, me fazendo sorrir.

— Oi, pai. Eu trouxe presentes para você. Como você está?

— Demorou — ele diz apontando para mim, e eu assinto, andando com ele até seu quarto.

— É, eu tive que viajar a trabalho, mas você pode me mostrar as pinturas que fez nesse tempo? — ele assente sorrindo e corre na frente, indo mostrar.

Entro em seu quarto vendo a grande janela aberta e milhares de quadros nas paredes, faces de várias pessoas e uma paisagem muito linda com flores e um céu azul. A enfermeira se retira, nos dando privacidade, e eu me sento na cama, olhando um quadro que parece ser eu, sorrindo com uma flor na mão. É lindo.

— Anjo falou, você vai ter flor, em você — ele diz, pegando minha mão, e eu deito minha cabeça em seu ombro, sem entender.

— O que mais o anjo falou?

— Falou para comer gelatina de cereja, precisamos pintar ursos. Anjo gosta de ursos — ele sorri piscando várias vezes e mexe em seu cabelo bagunçado.

— Papai, você escutou mais alguém?

— Tem anjo, rabo, lata e menino. Rabo é do mal, filha. Ele fala para eu fazer coisas ruins, mas os outros o deixam calado. Eles ficam falando aqui — ele sussurra tudo e mexe a cabeça nervoso, piscando incansavelmente.

— E os remédios? — sussurro, e ele sorri indo até um pote de tinta.

— Aqui, segredo: ruiva do mal que me dá eles. Confio no grandão negro. Ruiva tem cabelo do mal, filha do rabo — ele fala tudo piscando e olhando para o chão.

Acidente Perfeito- 2° RUSSOSOnde histórias criam vida. Descubra agora