Prólogo

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“A luz e as trevas estão misturadas no caos do homem.”
– Alexander Pope

Europa, 1834.

A noite caiu particularmente escura na Cidade de Gibraltar, como se qualquer luz infiltrada através das pesadas nuvens, que encobriam todo o céu, fosse absorvida pelas pedras das ruas e becos daquela pequena cidade portuária.

O silêncio foi bruscamente perturbado quando passos cambaleantes e desesperados adentraram uma pequena ruela, esgueirando-se pela penumbra. Ana Rivera procurava ali o refúgio que nem mesmo ela acreditava ainda existir. Seu peito arfante lutava para estabilizar o próprio ritmo, a fim de não entregar sua posição.

Não era a primeira vez que Ana precisava fugir para salvar a própria vida. Mas pela primeira vez, ela era obrigada a fazer isso sozinha. Ana era cigana, e desde a sua infância, conheceu a face do preconceito quanto a sua origem. Por duas décadas ela viveu sem ter um lar fixo, viajando o mundo juntamente com sua pequena caravana.

O futuro sempre foi incerto, onde quer que tentassem se estabelecer, eles eram perseguidos e expulsos sob pena de morte. Mas essa noite, tal penalidade foi aplicada sem um aviso prévio ou ameaça. Sua caravana foi atacada e ela viu seu pai, Manolo Rivera, ser morto a sua frente, enquanto o mesmo garantia a possibilidade de sua fuga.

Ela não queria deixá-lo. Preferia ficar e lutar contra o que fosse, com todas as suas forças restantes se isso significasse uma chance de salvá-lo ou a qualquer um de seus amigos. Mas Ana sabia que isso não seria possível. Eles estavam em menor número e sem nenhuma arma. Por isso, se obrigou a atender o último pedido de seu pai.

Ela correu.

Correu até que suas pernas quase não a sustentassem mais. Sufocando a sensação esmagadora que crescia em seu peito e ameaçava irromper a qualquer momento em forma de lágrimas.

Seus passos, agora lentos e tão silenciosos quanto possível, guiaram-na rua abaixo, sempre utilizando-se das sombras disponíveis para se camuflar. Ela sabia, no entanto, que não seria suficiente. Sabia que estava sendo seguida e até podia ouvir o ruído discreto da aproximação, embora não conseguisse distinguir a direção.

Sentindo a respiração acelerar novamente, cambaleou para trás e continuou seguindo desta forma, virando o rosto constantemente para averiguar cada centímetro visível, apesar da clara limitação de sua visão no momento.

Sentiu sua pulsação falhar uma batida quando braços envolveram seu corpo por trás, ao mesmo tempo em que uma mão se posicionou a frente de sua boca. Ana resistiu ao impulso de inspirar o ar através do pequeno lenço ali presente, pois reconheceu o odor antes mesmo de tocar seu rosto. Clorofórmio.

O tecido não estava completamente encharcado, e ela sabia ser forte para lutar e desvencilhar-se antes que o efeito a atingisse, mas nesse momento, seu corpo se recusava a obedecê-la, tamanha a exaustão que já lhe atingia.

Suportou até o último segundo possível privada de oxigênio, mas seus instintos de sobrevivência venceram a razão e a força já escassa. Ela inalou o ar para seus pulmões quando já não havia alternativa, sentindo o corpo ceder pouco depois.

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