Epílogo

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“Tive uma jóia nos meus dedos
E adormeci
Quente era o dia, tédios os ventos
‘É minha’, eu disse.

Acordo e os meus honestos dedos
(Foi-se a gema) censuro
Uma saudade de ametista
É o que eu possuo.”

Emily Dickinson – Não sou ninguém




Oito anos depois...

Jalil Ahmed encarou o teto do aposento apenas por um momento antes de erguer o corpo e sair da cama a procura de suas roupas. Olhou novamente para Callahan, enquanto fechava os últimos botões da camisa.

Ele continuava deitado, alheio a sua presença, como acontecia na maioria das vezes. Em seu peito nu, mesmo encoberto por inumeras tatuagens, era difícil não notar como as cicatrizes acumulavam-se e pareciam se multiplicar a cada ano.

Jalil não precisaria conhecê-lo muito para entender que ultimamente toda e qualquer atitude do capitão parecia suicida, apesar de o mesmo ter escapado com vida de todas elas até então. Ele não poderia negar, no entanto, que todo aquele esforço havia gerado resultados positivos para muitas vidas.

Não era segredo para ninguém naquela tripulação a promessa feita por Callahan para Ana Rivera, e não foram necessárias ordens ou pedidos para que todos, em comum acordo, seguissem com sua execução, mesmo após sua morte.

Nós últimos oito anos, Callahan buscou incansavelmente por pistas sobre o paradeiro de todos os ciganos integrantes da caravana a qual Ana e seu pai pertenceram. É fato que grande parte deles havia sido morta na mesma noite que Manolo Rivera, mas o restante, cujo destino fora o contrabando para a escravidão, teve sua liberdade devolvida pela tripulação do Invictus.

Quanto aos seus compradores, obtiveram o mesmo fim que o proprietário do curtume, uma morte dolorosa após abrir a boca sobre toda e qualquer informação que viesse a ser útil.

Não houveram mais emboscadas, ainda que tenham voltado a cair em um par de situações complicadas. Mas desde a fatídica manhã naquela ilha italiana, não tiveram mais nenhuma baixa entre eles. Ao menos até a presente data.

— Capitão. – Jalil o chamou, quando já se encontrava completamente vestido — Otto deve estar a sua espera. Iremos ancorar em breve.

Vítor o encarou em silêncio, refletindo sobre a mais recente notícia a circular o navio. Otto Lestrange estaria ancorando definitivamente no próximo porto. Entregaria o seu posto como imediato do navio e já não seria um dos tripulantes do Invictus.

Tal fato não deveria ser uma surpresa para nenhum deles, devido a idade já avançada de Otto, cuja função naquele navio fora atribuída por seu pai, capitão antes dele. Ainda assim, diante desta confirmação, Vítor ainda não havia conseguido assimilar tudo o que se passava em sua mente.

Ele ergueu-se da cama, deixando cair sobre a mesma a manta que o cobria, e alcançou suas roupas.

— Diga para ele que coordene-os no preparo do navio para a ancoragem. Será sua função de despedida do cargo.

Sua voz pareceria neutra, se Jalil não reconhecesse aquele tom profissional, muitas vezes utilizado como um escudo para encobrir as suas verdadeiras emoções. Hábito este que ele viu se repetir nos últimos anos em uma frequência muito maior do que gostaria.

Vítor nunca foi uma pessoa sentimental, sua criação e todas as suas experiências até ali não lhe permitiam isso, mas era inegável que após a morte de Ana, ele havia se tornado outra pessoa. Fechara-se para qualquer aproximação que fosse além de um ato físico, mas Jalil não poderia dizer que não o compreendia.

Apenas concordou com a ordem recebida e saiu da cabine em silêncio. Então Callahan foi até uma cômoda, alcançando o cinto e acoplando a ele todas as suas armas de maneira distraída.

Antes de retirar-se da cabine, no entanto, seus olhos focaram em uma pilha de papéis, equilibrada precariamente sobre o tampo de um velho baú. Acima de todos eles, repousava um livro.

Ele aproximou-se e tocou ligeiramente a capa, na qual era intitulada uma das obras de Jane Austen. Aquele que foi o primeiro livro a ser lido por Ana a bordo do Invictus, tantos anos atrás.

Vítor o segurou entre as mãos e seguiu até o outro lado de sua grande mesa, abriu uma das gavetas e o depositou cuidadosamente ali, junto aos outros.

Mais uma vez seu olhar foi retido por um instante, agora em um tecido branco e macio, que permanecia dobrado naquela mesma gaveta.

Encarou o bordado, enquanto sua mente repetia os mesmos questionamentos de sempre, entre eles o porquê de ter levado consigo aquela pequena bata infantil.

Ele sabia que nunca teria confirmação de suas suspeitas, e não tinha certeza de qual explicação preferia ter ouvido de Ana naquele dia. Tê-la perdido já lhe parecia um fardo demasiadamente grande para se carregar. Ainda assim, de alguma forma, temia já conhecer tal resposta.

Vítor suspirou pesadamente, voltando a fechar a gaveta, e em seguida rumou até o convés, onde precisaria lidar com o que para ele assemelha-se a mais uma perda.

Reconhecia, no entanto que para Otto aquela era a decisão mais sabia. A vida em um navio pirata exigia muito de qualquer tripulante, e para um homem de meia idade algum descanso era mais que bem vindo.

Além disso, o tranquilizava saber que ele estaria seguro e não ficaria sozinho. Otto seria o mais novo residente de um pequeno vilarejo, montado através de muito trabalho, e que abrigava os ciganos resgatados por eles.

Vítor abriu a porta de sua cabine e saiu para encontrar aquele que para ele fora como um pai, durante tantos anos. O ar da noite era gelado e as ondas quebravam violentamente devido ao vento forte, agitando as velas e bagunçando as vestes de todos naquele convés, enquanto Otto gritava ordens de maneira eufórica, como se tomasse como missão especial aquele último encargo.

Vítor o observou por um momento, tendo a certeza de que sentiria falta daquela cena, mas repetia para si mesmo que ele estaria seguro e a salvo.

Eles estariam.

E Vítor Callahan garantiria isso.

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