escritores ou terríveis pecadores?

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Tem uma coisa que talvez ninguém saiba ou que, para alguns, pode ser uma mera especulação: escritores são pessoas terríveis

Não terríveis de um jeito pesado ou macabro. Podemos elencar os nossos pecados como nível um, onde ficam coisas como: falar mal de uma pessoa por uma hora seguida e depois respirar fundo e soltar "mas quem sou eu pra julgar" ou ver que um amigo te mandou mensagem, mas escolher ignorar porque simplesmente não tá afim de responder. 

A questão é que os pecados dos escritores são um pouco mais específicos dentro do nível um, não só porque eles dizem respeito à nossa escrita, mas também porque nós não deixamos transparecer o quão terríveis somos. Tudo se passa apenas na nossa cabeça e não há acesso algum para que essas coisas sejam confidenciadas, a não ser que você esteja falando com outro escritor que comete os mesmos desvios, então fica mais fácil falar sobre essa parcela terrível que você é sem ser julgada como uma vaca. 

Estou aqui para contar alguns segredos que podem acabar um pouco com a minha própria imagem e a imagem de outros colegas escritores, mas, se tratando deles, eu não dou a mínima. 

E este é o primeiro pecado que escritores cometem: a gente não consegue gostar cem por cento dos nossos colegas de trabalho, aqueles que fazem parte do nosso núcleo de escrita. Posso amar Lygia Fagundes Telles, escritora renomada do século passado, amiga de Clarice Lispector e outras autoras fodonas da época? Posso, eu não tenho que conviver com os posts dela sobre o último romance que lançou no Kindle e já tem um milhão de leituras, nem ver a data e mês do meu aniversário para consultar com qual dos seus protagonistas gostosos eu teria uma noite de sexo extraordinária. Gosto de muitas colegas do meu meio, mas se disser que é cem por cento, eu estarei dizendo uma puta mentira. Alguns afetos não chegam nem nos cinquenta, para ser sincera. 

Tem um filme chamado "Meia-Noite Em Paris", sobre um escritor insatisfeito do nosso século que, numa estadia em Paris, consegue fazer viagens no tempo para o passado e se encontrar com grandes artistas da década de 20. Numa das madrugadas, ele se encontra com Ernest Hemingway, um escritor norte-americano consagradíssimo. Os dois começam a conversar e o protagonista pede que Hemingway leia o romance que ele está escrevendo para dar uma opinião. O que ele responde é icônico: "a minha opinião é que eu odeio". O protagonista fica confuso e diz "mas você nem leu", então a personagem de Hemingway fala algo que para sempre vou guardar na memória (do celular): "se for ruim, eu vou odiar, porque odeio escrita ruim... e se for bom, eu vou ficar com inveja e odiar ainda mais". 

Escritores são egocêntricos e competitivos. A gente até finge que não, lida com isso para não ser uma criança insuportável jogando queimada na aula de Educação Física, mas não dá para correr desses pecados. Vamos encontrar erros nos livros com mais de um milhão de visualizações e descer o pau: "como esse pedaço de merda pode ser vendido assim?"... No mesmo livro, vamos encontrar acertos e ficar remoendo: "como não pensei nisso antes"? #ranço

Esse desafeto pelo colega pode ser muito pequeno ou muito grande, mas existe. Nunca deixe um autor te enganar: ele não é um mocinho de bom coração que quer dividir espaço com todos os companheiros do meio literário. Alguns, ele esculacha mentalmente enquanto você faz a sua ingênua indicação.

Já o segundo pecado dos escritores é um pouco mais chocante. 

Considerando que somos obcecados por nossas histórias e as histórias que podem chegar em algum momento, na maior parte do tempo, estamos absorvendo o que vivemos. Nossos sentidos estão sempre ligados, independente da situação, seja ela um conflito ou parte do cotidiano. Situações do cotidiano são ótimas para nos dar criatividade, na verdade. Muitos falam sobre a hora do banho, quando a cabeça relaxa e abre alas para a inspiração, mas eu absorvo muito enquanto ando na rua e vejo gente, casas e trânsito. Em um quarteirão, tenho diálogos prontos ou personagens inseridas em situações trágicas ou engraçadas. Somos bebês, com a diferença de que eles dão significado ao mundo, nós damos ressignificados. 

O problema é quando estamos conversando com alguém ou com um grupo de amigos e uma ideia surge. 

De repente, nós começamos, definitivamente, a cagar pra todo mundo

Às vezes pessoas perdem a graça perto de ideias, mesmo se elas forem nossas amigas. Uma vez eu estava conversando com uma prima, ela desabafava sobre o trabalho e eu escutava. Só que a profissão dela é a mesma que a da minha personagem Ana Luísa: as duas são engenheiras civis. No tempo, eu estava formulando as situações de trabalho da Ana Luísa e, num ponto da conversa, comecei a perguntar coisas relacionadas ao trabalho dela, mas que não tinham nenhuma importância para aquela conversa. Ainda assim, a minha prima achou que estava interessada e se sentiu mais aberta para continuar desabafando. Enquanto isso, na minha cabeça, eu estava simplesmente reunindo informação. 

Hoje, uma da manhã, eu estava escrevendo Sua loucura e tive que me segurar para não acordar o meu marido e perguntar qual foi a maior dificuldade que ele já teve como baterista (o meu Pedro é baterista). Ele tinha dito que estava muito cansado, dormiu pouco na noite passada, mas por pouco eu quase caguei para essa informação e o acordei mesmo assim, porque não queria perder aquela linha da raciocínio. 

Filha da puta, não?

Por fim, o último pecado dos escritores (deste post) é a insatisfação, o que sentimos com a expectativa versus realidade.

Quando pensei em escrever este texto, eu estava assistindo a uma série (que não guardei o nome) sobre um escritor e seus irmãos. Eu não estava tão interessada na história, mas como o narrador era escritor, eu me senti conectada. Adoro filmes que tenham escritores como protagonistas. Adoro quando eles começam a narrar o que estão escrevendo no seu novo romance. Adoro quando eles aparecem com o cabelo parecendo um ninho cagado, com vários copos e xícaras vazios ao seu redor. Adoro quando fica perfectível que ninguém ali pode acompanhar as suas cabeças. Adoro a trilha sonora e os lugares legais em que eles escrevem, sempre especialmente comuns. 

Escritores nos filmes e séries são a minha expectativa de escrita. 

Até que eu sento a bunda na minha cadeira, no meu escritório (que é até um lugarzinho legal) e abro o meu notebook relativamente novo.

Não tenho a mesma trilha sonora inovadora me seguindo, não escrevo em inglês como os narradores narram com voz bonita, não tenho frases prontas nem um parágrafo para o qual não precise retornar mais de duas vezes. Tenho copos vazios e o cabelo cagado, isso sim, mas não é tão divertido quanto na tela da tv...

O meu texto não sai como eu imaginei. Às vezes ele me leva para um lugar que eu nem tinha planejado, e isso me deixa um pouco louca, porque, pelo menos na escrita, eu gostaria de ter o controle de tudo. Mas eu não tenho, nem mesmo aqui. 

A insatisfação é o que move muitos artistas, mas, dependo do excesso, passa a ser pecado. Talvez ela seja o maior pecado de escritora que tenho no momento, aquele com o qual preciso aprender a lidar. Queria que essa luta fosse como nos filmes, em que, no final, o escritor consegue entregar um ótimo manuscrito para o mundo, apesar dos bloqueios e dos capítulos que ele odiou. Quem sabe um dia não se realize, quem sabe não...

Como eu falei, escritores são pessoas terríveis

Mesmo assim, vocês continuam nos lendo.

O que se passa na cabeça dela?Onde histórias criam vida. Descubra agora