o que ninguém me disse

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Em vinte oito anos de vida, tiveram coisas que ninguém me disse. Talvez por que não sabiam que precisavam dizer, não tinham como dizer ou até mesmo por que não queriam dizer.

Por exemplo: ninguém me disse que tesoura sem ponta também corta a gente. Num dia da infância, fiz uma arte com cola no piso limpo de casa, e minha vó ficou furiosa. Quando fui correr dela, com a tesoura sem ponta da mão, cortei a lateral do joelho. Levei seis pontos, o médico que me costurava dizia: "mas que doido, heim? Se cortar assim com tesoura sem ponta"... Acho que também não disseram pra ele que isso podia acontecer.

Mais tarde, ninguém me disse que, pra preservar o que é nosso, é preciso guardar com cuidado. Teve uma vez que fiz um desenho da Cinderela, a minha melhor obra de arte até os meus sete anos, e o meu tio amassou sem querer. Fiquei me perguntando: "como ele pôde amassar uma coisa da qual senti muito orgulho?", sem saber que só tinha valor pra mim. Devia ter guardado na gaveta, mas ninguém me disse que os outros podem ser descuidados quando não sabem o que faz parte da gente. 

Ninguém me disse o que era clitóris nem se tinha outro buraquinho fora o de fazer xixi. Quando me masturbava, eu só sabia que era gostoso, mas não entendia por quê. Me perguntava se só eu era daquele jeito, se era como um tipo de mágica que eu fazia por mim, se era proibido por que era lá embaixo... Mais tarde, com a religião, cheguei a acreditar que era proibido mesmo, pecado capaz de me levar ao inferno. Com quatorze, na excursão de oitava série (era assim que chamava naquele tempo), eu menstruei e tentei colocar absorvente interno pra entrar na piscina do parque. Doeu, e eu pensei que tinha rompido o meu hímen e perdido a virgindade ou enfiado no buraco do xixi. Fiquei ansiosa com a possibilidade de perder a minha virgindade pra um tubinho de algodão. O que o meu futuro marido acharia quando, na Lua de Mel, sentisse que não perfurou a minha linha de chegada? Me chamaria de puta por ter o buraco livre? Mal dormi à noite, o coração pesado, sentimento de culpa paradoxal. Ninguém me disse que hímen não é barreira de castidade. 

Mas essa parte... Essa parte é a de menos. Sabe o que ninguém me disse? Que, aos dezessete, você não tá terminado, com o futuro traçado ou com certezas confiáveis. No Terceiro Ano, eu tinha convicção de quem eu era e do que aconteceria comigo por causa disso. Sonhei alto, fiz planos impossíveis... Até ali, todo mundo batia palma pra minha criatividade. 

Só que o mundo real não bateu. 

Ninguém me disse que, em contextos e situações novas, é impossível de ter controle e ser perfeita. Quando lá atrás eu fantasiei a minha vida na universidade, no namoro, nas descobertas a partir dos dezoito, me vi uma heroína indestrutível, que só subia na vida até conquistar seus destinados desejos. Então a graduação mostrou obstáculos que eu tinha medo de enfrentar, o namoro não era um roteiro de Hollywood e as descobertas nem sempre faziam sentido, de vez em quando, até machucavam. Nisso, eu me perguntava: "mas e a heroína? Por que não consigo ser como ela quando eu criei aquela vaca?". Por um bom tempo, não aceitei que nunca poderia ser a idealização que fiz de mim mesma, que não havia destino nenhum me aguardando no fim da escadaria, que eu não era mais especial que outros trilhões de indivíduos morando no mundo. Eu me perdi buscando uma imagem ficcional porque ninguém me disse que eu devia olhar para o que tinha sido até ali e que ainda seria outras coisas, uma vez que tudo na vida é efêmero, até a gente. 

Então eu me senti descer, degrau após degrau, descer na escuridão. Virei um poço de ansiedade porque não tinha como me enxergar sem luz alguma. Me senti vazia, pequena, medíocre, traidora... Muita gente já tinha me decepcionado, mas a minha maior decepção era aquela que a menina em mim sentia. Não que eu entendesse ou soubesse falar dessa dor. Ninguém me disse que era permitido senti-la.

Ninguém me disse que viver é uma tesoura sem ponta. Até então, eu pensava que não podia machucar, mas, dependendo de como se está correndo, pode cortar fundo. Tem que dar ponto, não tem jeito. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez pontos... Fica sempre uma cicatriz, branca, visível. Tem gente que pergunta: "mas que doido, heim? Se cortar assim com a vida"... Uns te costuram, mas quem junta o tecido e fecha o corte é você. Quem se levanta da cama de pronto-socorro e volta ao turbilhão do dia e da noite é você. Ninguém diz como continuar, mas que doido, heim? A gente aprende em cima da hora a se remendar. 

O que ninguém me disse vai além desse texto. São muitas coisas que podem sair até do meu entendimento ou que às vezes só fazem sentido para este momento. 

Mesmo assim, o que ninguém me disse aconteceu, continua acontecendo até hoje... Aí eu o descubro no despreparo. Heroína ou não, me desmembro, cato meus pedaços e me junto em outro formato, no jeito que me cabe. No fim das contas, talvez até nem adiantasse me dizerem... 

A vida é tecido, entendida também no corte.

O que se passa na cabeça dela?Onde histórias criam vida. Descubra agora