um.

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Não falamos o seu nome.

Era (é) um dia pessimista (ou talvez nem tanto), em mais uma semana consecutiva onde a chuva tomava conta da vasta cidade, nem mesmo ela suportou o peso da partida, da repentina (não foi) partida.
Keisuke estava sentado sobre o chão de madeira, em frente a porta da sua casa para observar com mais âmago a chuva fria que caía; ele fez isso todos os outros dias. Em suas pálidas mãos ele segurava um pequeno colar de conchas, a cada toque dado no pequeno objeto escuro, sua mente vagava cada vez mais aos questionamentos.

Por que ela?

Por que não falamos sobre ela?

Por que ela foi embora?

Por que não dá um sinal?

- Filho. - em passos sorrateiros, a mulher se aproximou, seu peito ardia ao ver o estado melancólico que o filho se encontrava. - Quer falar sobre ela?

- Nós não falamos sobre ela. - afirmou ainda disperso em seus pensamentos.

- Por que não?

- Porque ela me disse que não gosta.

O ano era 2008, o verão se alastrou por toda a cidade. Keisuke obrigatoriamente se direcionou à livraria da cidade para buscar um específico livro que deveria ler para finalizar um trabalho de filosofia, caso contrário rodaria novamente, e a última coisa que ele desejava era fazer sua mãe chorar outra vez. Ele podia sentir o coração se despedaçando só de se recordar

- Que porcaria idiota. - resmungou ao não encontrar nada que lhe agradasse na tal estante, acabando por derrubar um livro aleatório. - Puta que pariu, só faço merda.

Antes que pudesse se levantar ouviu um riso baixo, à sua frente viu a silhueta de uma garota da sua idade, Keisuke já a notou caminhando em inúmeros lugares por aí, ela morava em algumas ruas abaixo da sua, mas ele nunca soube o seu nome.

- As vantagens de ser invisível é um bom livro. - afirmou ao ver o objeto caído.

- Não entendo nada dessas coisas. - resmungou juntando o pobre livro do chão, que por sorte não foi esmagado. - É para um trabalho escolar... - esboçou uma careta ao perceber que estava se justificando tanto para uma quase desconhecida.

- Trabalho sobre o que? - indagou sem olhá-lo, deslizando os dedos pelos livros da estante ao lado. Já sabia qual queria comprar, mas estava curiosa com o assunto repentino.

- Filosofia... algo sobre conhecimento próprio. - revirou os olhos.

- Então achou o livro certo. - a garota virou-se para ele, esboçando um pequeno sorriso. - Tenho quase certeza que vai gostar.

- Você já leu? - a garota acenou positivamente com a cabeça. - Vou confiar em sua palavra.

- Pode confiar. - a garota pegou o livro que desejava, virando-se para ir embora em seguida

- Espera. - a chamou. - Qual o seu nome?

- Eu... - fez um pequena pausa, suspirando. - Eu não gosto do meu nome, pode me chamar de qualquer coisa. - foi a última coisa que ela disse antes de caminhar até a vendedora, deixando Keisuke pensativo.

Keisuke permaneceu alguns minutos observando a estranha garota sem nome identificado ir embora. A última frase dita por ela ecoou na cabeça do moreno pelo percurso inteiro até em casa. Era como um fantasma vagando pela cidade, sem identificação, será que ela sempre respondia isso para todo mundo? Ou foi apenas uma brincadeira boba feita para testar a reação alheia?

De qualquer modo, Keisuke adentrou em seu quarto enquanto abria o pacote do livro, a capa esverdeada contia um garoto de braços abertos enquanto andava em uma picape, a imagem o agradou.
Seus sapatos foram jogados para um canto aleatório do cômodo, obviamente sua mãe reclamaria sobre como o quarto do garoto é bagunçado, e como mal consegue andar no chão com tantas roupas jogadas.
A cama foi abrigada por Baji, o mesmo nunca foi interessado por coisas convencionais, nunca obtendo costume de ler ou sequer segurar em um livro por mais de alguns segundos.
Mas agora, por alguma razão não explicativa ele estava intrigado com o tal livro, e com a tal moça sem nome que recomendou a obra. Todo esse conjunto despertou sua mínima vontade de permanecer em silêncio e se perder nas palavras escritas por outro ser desconhecido também.
Pode sentir o específico aroma de livro novo quando folheou as primeiras páginas, compreendendo porque Chifuyu amava o tal perfume, era realmente agradável.

E assim sua leitura iniciou.

''25 de agosto de 1991...

Querido amigo.

Estou escrevendo porque ela disse que você me ouviria e entenderia...''

Em dois quarteirões distantes da casa de Keisuke,

a desconhecida garota estava sentada sobre o telhado da casa, suas mãos cobriam seus ouvidos em uma tentativa de não ouvir os gritos de seus pais; de não ouvir o seu nome.
Era quase usado para amaldiçoar a quem ouvisse, o nome era sempre acompanhado de algum adjetivo sombrio, além das vezes que seu nome era gritado indicando que viria um extenso discurso destruidor a ser ouvido.

Ela mesma amaldiçoava o nome e a quem falava.

Preferia ser chamada de um erro colocado ao mundo, de alguém irritante e entediante, como um grande peso morto nas costas de quem apenas a suportava por dividir o mesmo sangue a ser chamada pelo tal nome.

Ela sabia que seus pais não eram perfeitos, ninguém é. Mas conforme você cresce, o ambiente em que vive se torna cada vez mais difícil de ligar as boas lembranças do passado, e as pessoas se tornam decepcionantes. Todas movidas pelo seu ego e frustrações, as quais descontam naqueles que consideram mais frágil que elas.

As vezes ela desejava ser invisível.

Mas era impossível, mesmo que tentasse ser um fantasma humano sem nome andando pela terra, apenas dando suas meras opiniões pedidas, as críticas sempre pareciam achar-lá onde quer que estivesse escondida, assim como no exato momento.

A porta do quarto foi bruscamente aberta, mas ela se manteve escondida no telhado agarrando as mãos sobre as pernas.

- Eu sei que está escondida nessa merda de telhado, saía daí agora. - a voz embriagada de sua mãe soou. A mais nova engatinhou até a janela, apenas para encará-la. - Eu falei pra você sair.

Sem vontade própria, a garota saiu, colocando os pés sobre o sofá que se localizava em frente a grande janela.
As orbes perdidas se encontramram com as de sua mãe, os olhos vermelhos e inchados revelavam o quanto ela havia chorado durante a discussão. Além da embriaguez habitual, uma garrafa com álcool pela metade era segurada por ela.

- Eu e o seu pai estamos nos separando. - afirmou sem cerimônias. - E eu vou embora. - apontou para si mesma, aumentando o tom de voz gradualmente. - Escutou? Somente eu vou embora, você fica aqui.

- Por que? - questionou com o semblante neutro, aquilo a atingiu menos do que imaginou, menos doloroso que um beliscão.

- Porque agora quero viver a porra da minha vida. Sem ter alguém para eu ficar me preocupando se está viva. - desta vez apontou para a garota, atingindo o meio de seu peito, podia sentir as unhas pontudas cutucaram a sua carne.

Em silêncio apenas assentiu positivamente com a cabeça, os olhos que observavam tudo ao redor observaram a própria mãe ir embora. Sem nenhum abraço de despedida ou um mero olhar de ternura. Sobrando apenas a garota do outro lado do quarto, sendo abraçada pelo silêncio e solidão da noite, tão comum como o ar que respirava.

Alguns passos foram dados até a porta para fechá-la, acabando por esbarrar com o seu pai no corredor. O homem apenas a encarou em silêncio e a desconhecida fez o mesmo, não havia palavras para serem ditas naquele momento confuso. Dois desconhecidos se encarando diante aquela escuridão.

- Sabe... - deslizou a mão sobre a porta, suspirando pesadamente. - Quando eu era criança... você costumava ser o meu herói.

A porta foi fechada, sem respostas a serem esperadas, sabia que ele não falaria nada como sempre. O silêncio dele era ensurdecedor, como uma pena caindo sobre inúmeras bombas prestes a explodir a qualquer contato obtido.
E na calada da noite, a fantasma das ruas adormeceu após algumas lágrimas derramadas, sendo abraçada pelas águas salgadas de sua frustração.

Não falamos o seu nome. - Keisuke Baji Onde histórias criam vida. Descubra agora