X - sugar baby

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Letícia deveria pôr ordem em sua vida com a mesma dedicação que arrumava as prateleiras da pequena loja. Cada maldita peça de roupa parecia ser uma camada sua, sendo guardada com a intenção vil de se manter intacta pelo resto da semana. Estava cansada, mas no fundo sabia que não era um cansaço físico; pelo contrário.

Quando voltasse para casa, com a face coberta por uma maquiagem pesada para esconder o hematoma que ganhava mais cor a cada dia, ganharia um "Boa noite!" receptivo de Lucinda, talvez a velha comprasse um doce e deixasse a janta pronta. A genitora sempre tentava comprar a trevosa depois de uma surra.

Ter que enfrentar a indiferença de sua família doía na alma. O pai da garota, trabalhador árduo que passava a maior parte do tempo em seu emprego mal remunerado, não tinha tempo para reparar em todas as merdas que aconteciam na própria casa. Os horários também não eram dos melhores. Gustavo trabalhava de motorista em uma empresa de transporte coletivo, pegava dois turnos — e mesmo que fosse contra a lei, o jeitinho brasileiro sempre contribuiu — e aparecia em casa apenas de madrugada, enquanto todos dormiam.

Certa vez, após ser covardemente espancada na adolescência por ter quebrado um rádio à pilha, Letícia passou um mês vestindo roupas de frio — e Gustavo nunca perguntou o motivo. Parte da trevosa entendia que ninguém se importava o suficiente para fazer alguma diferença, e, nessa brincadeira de esquecimento, as agressões viraram rotina.

Faltavam pouco menos de 3 horas para o término de seu expediente e Letícia não queria voltar para casa. Pegou o celular e clicou no grupo de amigas, contudo, desistiu. Não estava com dinheiro para gastar e apenas a menção de um "depois você me dá" de Janaína a fizera desistir. Droga. Respirou profundamente e finalizou a organização diária da loja.

Explorou o corredor do shopping por um momento. Não queria passar os próximos anos presa naquele lugar claustrofóbico e cheio de gente mal-educada. Se a vaga de Figueiredo mantivesse pelo menos meio salário-mínimo, poderia se dedicar apenas à faculdade e ao estágio, e mandar todos em sua casa irem pra casa do caralho. Mas besta do jeito que sempre foi, Letícia nunca faria algo do tipo.

Na cara e na coragem, a trevosa puxou uma das peças pretas da prateleira e enviou uma foto para sua patroa, entrou no aplicativo do banco e fez o pagamento, também enviando o comprovante. Por sorte, Bianca nunca se importou de Letícia comprar mercadorias diretamente com ela, contanto que não comprasse da concorrência. Ainda com o celular em mãos, mandou mensagem para Bernardo. O professor tardou mais de uma hora para respondê-la.

Enfiou-se no banheiro da praça de alimentação e se limpou com lenço umedecido, retocou a maquiagem e trocou de roupa, colocando o vestido recém comprado. Em outras circunstâncias, a trevosa o teria lavado com antecedência, mas o tempo não estava a seu favor. Queria parecer minimamente atraente, depois do show de horrores que foi a noite passada.

O que porra estava pensando quando apareceu no apartamento dele de madrugada? Com a face inchada de choro e o hematoma tão aparente? Bernardo deveria achá-la mais uma pobre fodida cheia de problemas na família, doida para se encostar em algum canto. Ela só queria ter um momento bom no meio de tanta coisa intragável.

Quando o carro que Letícia considerava ser de luxo parou em frente ao local de encontro, na mesma padaria que havia tomado café outrora, um frio na barriga se apoderou dela. Não era como as malditas borboletas no estômago que todos os filmes de romance sempre descreveram, pelo contrário, era um rebuliço de emoções variando entre nervosismo, ansiedade e excitação. Não parecia suave como o voar do inseto.

Assim que o professor se inclinou e abriu o carro para a garota, Letícia o analisou. Bernardo deveria estar fazendo algo importante se fosse julgar a vestimenta. A camisa com todos os botões fechados, os cabelos penteados para trás e o perfume dançando pelo interior do veículo. Cacete, até a escolha da calça escura parecia correta, assim como o relógio caro.

LETICIA | CRIMES QUE SEDUZEM VOL IOnde histórias criam vida. Descubra agora