A escola vai bem, obrigada. Sento perto da janela e às vezes me distraio olhando os carros na rua. Já fui mais próximas dos meus colegas, mas acho que nunca tive aquela coisa clichê best friend forever. Transito pelos grupos, meio nômade. Ultimamente tenho passado os intervalos na biblioteca fingindo ser uma intelectual nostálgica enquanto observo as teias de aranha no canto das paredes.
Aranhas são interessantes. Você sabia que elas produzem a seda dá origem à teias no próprio abdomen? E que esse material é absurdamente resistente? Teias são mais fortes que o aço e mais elásticas que o nylon. E cada aranha é capaz de produzir mais de um tipo de trama. Tem a teia para se movimentar, proteger, capturar... Acho sedutora essa ideia de presas desavisadas ou atrevidas acabarem paralisadas, prontas pro abate. Lembrei do Frodo e da Laracna...
Mas você pediu para falar sobre amizade, descrever alguns colegas da escola. Vou escrever sobre o Heitor. Não tenho falado muito com ele, mas é um cara legal. Ele está um ano na minha frente, mas a gente se conhece desde pequeno. Um nerd inteligente sem ser bitolado. Foi ele quem me convenceu a ler O Senhor dos Anéis. Não dei conta, fiquei com ranço daquele bando de hobbit que não saía nunca do condado e me contentei com os filmes... Melhor falar do Heitor.
Ele tem mais ou menos a minha altura, mas é miúdo, meio franzino, discreto. Gosta de fazer tudo a pé ou de skate. Escuta Metallica e Motorhead; lê histórias medievais, tipo cavaleiros templários, reis, dinastias e pirou com Game of Thrones. Ele tem o cabelo comprido, liso, meio oleoso e só anda de rabo de cavalo (acha ridículo usar coque). Teve uma namorada por um tempo, mas não deu muito certo. Ela era bonita (pelo menos eu achava).
Heitor é educado, gentil e tá aberto para ouvir, aprender e mudar. Os outros meninos às vezes fazem comentários questionando sua masculinidade porque ele não é escroto, não expõe as minas que pega. Ele escuta e ignora. Não é popular, não tem milhões de seguidores e andar com ele não é algo que confere status para alguém. Porque você sabe, Angélica, com quem você anda é um fator muito importante de (des)valorização na adolescência. É a máxima do "diga-me com quem andas e te direi quem és". Ainda assim gosto de andar com ele.
Eu não sei se Heitor é bonito. É um pouco narigudo, olhos verdes e um sorriso lindo. Ele sai com as meninas do terceiro ano ou com as irmãs mais velhas dos amigos. Sei disso porque, quando éramos mais próximos e saíamos com mais frequência, ele me contou. Uma vez ele falou que ficou com uma menina no banheiro da piscina durante a festa de aniversário do João, um cara beeeemmmm babaca. Poucos dias depois, estou eu fazendo xixi no banheiro da escola e duas garotas começam a falar da tal festa, das maluquices, de quem pegou quem até que uma delas, bastante entusiasmada, começa a contar detalhadamente o que rolou com o skatista magricela metido a elfo no banheiro da piscina. Heitor não foi específico quando me contou, mas a garota desavisada era uma excelente narradora e parecia bastante satisfeita com a história. Disse que o elfo era mágico e minuciosamente falou do pau dele para a amiga. Estou te contando isso para você entender que, se essa história tivesse vazado e surgisse a menor possibilidade de prejudicar a garota, Heitor diria que é mentira e que nada disso rolou. Ele sabe que para uma menina ser chamada de vadia ou ganhar apelido de Lovelace ou Sra. Khalifa é fácil e isso pode ferrar a vida dela num instante. Acho que é por causa desse respeito sutil à intimidade alheia que nunca falei nada sobre o episódio do banheiro pra ele. Imaginei que ficaria constrangido ou me acharia tão idiota quanto os caras que zoam a masculinidade dele.
Ah! Foi Heitor que me levou pela primeira vez na pista de skate. E foi ele que me encorajou a andar de patins (tipo quad) ali, no meio daqueles meninos. Antes eu patinava na quadra de uma praça e fazia aulas num ginásio municipal. Mas era patinação artística, uma coisa meio Sou Luna. Acontece que uma vez falei que tinha vontade de patinar na pista, para ver como era, por curiosidade mesmo. Falei pro Heitor que o sobe e desce dentro do bowl me lembrava aqueles programas de culinária em que os chef sacodem camarões e legumes naquela frigideira asiática, deslizando pela lateral da panela e, assim como a comida, os skatistas - escaldados pelo calor - saíam corados, úmidos e acabados. Prontos para serem devorados. Rimos juntos...
VOCÊ ESTÁ LENDO
A amiga tóxica
Teen FictionUma história real disfarçada de ficção que fala sobre amizade, feminismo, primeiras vezes e relações tóxicas. Layla tem 16 anos. É uma garota que gosta de música e se acha bastante normal. Esse é o diário que a psicóloga dela pediu para que ela escr...