11 - Patrícia

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O mundo é muito ervilha e aquela festa no João rendeu. Rendeu porque me esfreguei de tal forma no amigo da Gi que passei a ser vista como pegadora, boa de sexo (mesmo sendo virgem), alvo de desejo. No começo foi estranho, mas depois gostei da atenção. Passei a me sentir vista, notada de verdade e que eu mais escolhia quem queria beijar do que era escolhida. Isso me deu um certo poder, uma confiança que ia além de ficar alguém. Acho que mudou até o jeito como eu me relacionava com outras meninas...

Paty, por exemplo, depois que ficou sabendo, passou a fazer comentários mais íntimos. No treino, se antes a gente conversava sobre o trivial, agora ela me chamava para rolês alternativos. Um dia, num momento de sinceridade,  me contou que já tinha ficado com cabeludo ruivo. "Compartilhamos saliva indiretamente, Layla...", disse rindo enquanto me encoxava num treino de contato de blocker com jammer.

Obs. A próprosito, rollerderby é um esporte de contato. É normal e aceitável que durante o jogo role uma encoxada, mão no peito, mão na bunda. Mas é tudo acidental, ninguém faz com malícia. 

Voltando à Paty... No intervalo, enquanto bebíamos água, ela me perguntou se o cabeludo estava mais habilidoso com língua. Disse que ele não sabia beijar direito, que parecia que estava salvando alguém de afogamento. Eu não tinha gostado de ficar com ele e torcia para nunca mais encontrá-lo, mas  gostava do status que me foi atribuído. Minha resposta foi baseada puramente nisso. "Já beijei melhores...", eu disse. Sim, eu estava me sentindo tão foda que permitia fundamentar minha opinião nas poucas ou inexistentes experiências que eu tinha tido. Mas fazia sem transparecer, falava com propriedade, quase uma soberba. 

Paty riu, falou que me entendia e completou "Mas o pau dele era razoável ou não? Porque eu só passei a mão de leve. De repente compensou...". Me afoguei, saiu água até pelo nariz. Rimos juntas e recuperei o fôlego. "Não vi, mas confirmo sua observação", eu disse apesar de ter certeza absoluta que, se passei a mão no pau do ruivo, foi quase sem querer, um deslize tão rápido que eu se quer pude ter noção de volume, tamanho etc. Fábia se meteu na conversa e me corrigiu "Como assim não viu? Até eu sei que você viu!". Eu sabia dos boatos e que provavelmente o próprio cabeludo deve ter inventado uma coisa ou outra. Mas, vindo de Fábia, valia mais desacreditá-la do que esclarecer as mentiras que os meninos contam. "Ah, Fa, há mais coisas entre o céu e a terra do que pensa vossa vã filosofia, já dizia Shakespeare", respondi sorrindo. "Certeza, mana!", Paty concordou rindo enquanto Fábia ficou no vácuo. 

No fim do treino, Paty foi embora comigo a pé. A avó dela morava perto da minha casa. No caminho conversamos bastante. Contou que Fá, apesar da pose, era um pouco conversadora em alguns aspectos mas que não era má. "É meio ingênua, mas é gente boa, tem bom coração... É óbvio que seleciono o que falo porque tem coisa que choca, mas é de boa mesmo", falou. Respondi que ela pensava assim pois Fábia notavelmente não tinha problemas com ela. 

Chegamos na casa da avó e Paty me convidou para entrar. Avisei minha mãe sobre a mudança de planos  (nessa fase ela já tava bem acostumada com as saídas pós-treino) e entrei. A avó não estava em casa. Sentamos numas cadeiras no quintal, Paty colocou uma música, me ofereceu um baseado e eu agradeci a oferta, porém neguei. "Ácido, então?!", perguntou. Nunca ninguém tinha me oferecido isso antes e fiquei com medo de aceitar, dar ruim. Acho que Paty percebeu meu espanto e emendou falando que tava de boa, que ela não ia tomar. 

 "Essa música tocou num dia mais doido da minha vida, sabe... Não sei se você você sabe, mas eu meio que namorava o Domênico...", Paty falou.
"O que se matou?", perguntei visivelmente assustada.
"É, esse mesmo... Era um cara legal, criativo, inteligente, mas sempre com uma bad atrás de tudo. Era depressivo, tomava uns remédios e tal, mas usava outras coisas junto... Foi ele me deu ácido pela primeira vez e eu sabia que uma hora ia dar ruim, bater errado."
"Lamento muito. Eu não sabia...", respondi sem jeito.
"A gente meio que ficava junto, mas não era uma coisa exclusiva. Ele saía com outras meninas de vez em quando, eu também e pra ele tava de boa. Mas ele começou a ficar muito doido, me tratando mal, meio estranho, se ofendia quando alguém me elogiava... Porque, assim, ele era muito foda, muito criativo, um cara super respeitado por onde passava. Eu sou mais na minha, nada genial...".
"Pare! Você é muito foda, Paty! Te acho tão segura, livre, poderosa! Você é destemida demais!", interrompi. Paty deu uma gargalhada espontânea e voltou a falar.
"Então, cara, era tipo isso. Domênico escutava uma coisa dessa e achava que você falou isso porque, na verdade, achava ele bosta. Eu sei que não tem nada a ver, mas ele se sentia assim...".
"Auto-estima baixa talvez...", complementei.
"Faz sentido, mas ele era muito sensacional... O fato é que ele continuou misturando os remédios com ácido e o que você puder imaginar, foi se afastando... Um dia conheceu uma mina evangélica que mostrou pra ele a salvação. Ele ficava com ela, disse que queria namorar sério, que tava apaixonado, mas vinha atrás de mim, aparecia aqui na vó nas horas que ele sabia que eu tava sozinha e a gente ficava. Ele começou a sair com ela e a apresentá-la como namorada. As pessoas estranharam e alguns amigos dele se aproximaram mais de mim. Foi quando ele começou a ter uns surtos quando alguém me elogiava. Uma mina que ele nem conhecia fez um comentário no Instagram falando que me admirava e tal. Ele veio aqui na casa da vó, me ameaçou, pegou meu celular e ligou pra essa mina pra tirar satisfação. Ela nem conhecia ele, cara! Foi doido. A vó tava em casa, foi plena, colocou chá na mesa, bolo e chamou ele pra comer. Ele desligou o telefone, pegou a faca de passar manteiga e ficou batendo na mesa enquanto me xingava dizendo que eu tava fodendo a vida dele, a reputação dele... A vó escutou tudo com calmaria, convenceu ele comer, deu chá... Ele se acalmou e a vó foi muito educada e disse que ele tinha razão, que ela viu que Deus tinha tocado o caminho dele de um jeito que não tocou a minha vida... A vó nem sabia da evangélica!" 
"Meu! Que loucura! Eu não tinha ideia disso tudo! E ele fez o que depois que sua vó falou?", insisti porque tava curiosa e queria o que aconteceu.
"A vó recolheu a mesa, fechou a porta da cozinha com as facas lá dentro. Voltou aqui pro quintal, abraçou ele e disse que ela não ia mais permitir que eu me aproximasse dele. Ele agradeceu, chorou abraçado na vó, me abraçou e eu falei pra ele que minha vó tinha razão. Ele olhou dentro do meu olho, disse que era melhor assim e foi embora. A vó fechou portão logo em seguida com cadeado, fechou a casa inteira, me abraçou forte, perguntou como eu tava, disse que a gente ia esperar uma hora pra ir na delegacia fazer um boletim de ocorrência... Muito ninja!"
"Gênia demais!", concordei.
"A gente foi na delegacia, não sei se Domênico recebeu alguma coisa ou não. Nesse mesmo dia, a evangélica me ligou dizendo que eu era o demônio em pessoa, que Domênico foi na casa dela e terminou tudo. Escutei e disse que ele tinha terminado tudo comigo também. Desliguei. Ela fez umas postagens idiotas sem dizer abertamente que era sobre mim, falou de amor eterno, que Deus salva e pouco depois os dois voltaram. Domênico tentou me ligar algumas vezes mas eu não atendia. Na semana do Dia dos Namorados, tipo uns três meses depois daquela discussão horrível, ele se matou."
"Nossa! Tudo muito triste e você é realmente muito forte pelo o que passou...", comentei.
"A vó cuidou bem de mim... Foi uma fase estranha. No meio da galera de banda e de skate, eu era a viúva do Domênico. No bairro dele, pros pais, na faculdade, a viúva era a mina evangélica. A gente se encontrou num mercado um dia. Ela ficou me olhando, mas não falamos nada...  Eu gostava do Domênico, amo ele até hoje mas nunca considerei ele meu namorado. O amor que eu sentia e sinto é uma coisa de amigo, de parceria, como se a gente se complementasse... Ele foi a primeira pessoa pra quem eu disse que gostava de mina também. Ele levantou os ombros e disse que era provável que a gente tivesse compartilhado saliva indiretamente por aí. Muito de boa e quando me via com alguma mina, também era tranquilo, de boasso!"
"Triste, mas bonito de alguma maneira, eu acho...", falei.
"Ele me ensinou que é bom ser a gente mesmo. Quando fiquei melhor, contei pra vó que eu tava apaixonada por uma mina. Ela me abraçou forte e disse que sempre ia me proteger pra eu ser feliz. Me inspiro nela, sabe... Gosto de ver as pessoas sendo felizes sendo elas mesmas... Por isso curti muito quando fiquei sabendo da sua história com o ruivo na festa. Te achava meio travada, meio conservadora enrustida, tipo a Fá. Mas vi uma libertação ali...", falou rindo.

Concordei e realmente achei que tinha sentido. Naquele momento eu não tinha ideia de quão presa eu já estava num ideal, numa pose que eu tinha criado, numa aprovação que eu nem sabia que tinha necessidade. Patrícia ficou na dela quando tudo veio abaixo e pouco depois mudou de país. Foi morar na Europa com uma tia. Não somos amigas nem em rede social.


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⏰ Última atualização: Jun 20 ⏰

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A amiga tóxicaOnde histórias criam vida. Descubra agora