O Desfecho

18 2 4
                                    

Enquanto ele flutuava em sua nave pelo enorme vazio do espaço sideral, as memórias de como ele havia chegado ali flutuavam em sua cabeça, ele já não sabia mais se elas estavam armazenadas em sua parte robótica ou em sua parte humana e tão pouco sabia o quanto de humanidade de fato restava nele. Milhares de anos se passaram desde que ele, junto do brilhante cientista que ele não via há anos, Endrigo, criaram a tecnologia necessária para que as viagens interplanetárias e interestelares fossem possíveis, o segredo, e ele se lembra de ter tido exatamente isso, não estava em diminuir o delta-tempo necessário para percorrer uma certa distância, mas, sim, em eliminar quase que completamente a passagem de tempo como um fator a se considerar.

Com a genialidade de ambos os pesquisadores, eles acharam um jeito de substituir partes do corpo humano por partes robóticas, de modo que a consciência da pessoa submetida a esse experimento pudesse ser "desligada" por tempo indeterminado e reativada a qualquer momento, sem nenhum efeito colateral e sem qualquer sinal de envelhecimento. Com isso, o tempo necessário para viajar do planeta terra a qualquer outra galáxia do universo pareceria nada mais nada menos que uma noite de sono para o astronauta.

A ambição infinita que sempre habitou seu coração fora a razão pela qual ele foi o primeiro a se submeter a tal experiência, ele se lembra ainda das despedidas que deu as pessoas que para ele eram valiosas, sabendo que, independentemente de sua ideia ser ou não um sucesso, ele jamais veria aquelas pessoas de novo. O arrependimento palpitava levemente em seu coração ainda humano enquanto as suas melhores memórias invadiam como um filme o seu cérebro.

Dois amores em específico nunca deixaram sua mente: o primeiro, ainda jovem, com uma garota que a presença o fazia se sentir confortável como nunca havia se sentido com ninguém mais, a primeira vez que sentira as famosas borboletas no estômago, o segundo, já um pouco mais maduro, com um garoto, envolvia, além da paixão, um desejo carnal forte que complementava a relação e o fazia se sentir completo.

Ele se sentou na cadeira de comando de sua nave e aproximou o microfone de sua boca, levou o dedo indicador direito até um botão azul próximo da entrada de som e o apertou com um certo pesar, ele estava chorando, embora nenhuma lágrima saísse de seus olhos artificiais, ele definitivamente chorava, estava com medo, morrendo de medo da morte que ele mesmo escolhera o dia, a hora e o local, a verdade é que a ideia de simplesmente não existir lhe parecia ao mesmo tempo acolhedora e aterrorizante. Sem pestanejar mais, se pronunciou:

-Aqui é a viagem de número 000000. - Ele fez uma pausa e logo continuou com o que realmente queria dizer. - Eu tenho noção de que as chances de, nesse exato momento de tempo em que estou desperto, algum conhecido meu estiver me ouvindo são extremamente baixas. - Parou, as palavras que diria a seguir ainda eram difíceis de dizer. - Mesmo assim, se alguém que, em alguma era perdida, já chegou a me amar ou alguém que, por algum milagre, ainda me ame, quiser me dizer alguma coisa ou simplesmente conversar comigo uma última vez, essa será sua última oportunidade, estou a caminho de uma estrela, a mais brilhante que já vi, ela irá me engolir e queimar tudo o que resta de mim, não haverá backup, não haverá qualquer resquício de minha existência, estou aqui para anunciar a minha, derradeira e final, morte.

Ele esperou alguns minutos, não havia muito o que fazer também enquanto sua nave se aproximava do seu destino final. Ele se lembrou de seus amigos, aqueles que sem sombra de dúvida era um dos principais, se não o principal, motivo de ele ter chegado tão longe, ele se lembrou dos cinemas e filmes que assistira, das risadas que dera, dos momentos incríveis que passara com cada um deles, se lembrou também dos momentos que não foram tão bons assim, se lembrou da brigas, das intrigas, das saudades e dos momentos de sofrimento, mas guardava ambos os tipos de memória com o mesmo carinho em seu coração, se pudesse, naquele momento, ele abraçaria cada um deles com o mais profundo afeto que cabia em sua alma.

Ele olhou através do para-brisa de seu veículo, a enorme estrela brilhava majestosamente milhares de quilômetros de distância a sua frente, ele já viajará por diversos sistemas solares e até encontrara algumas formas de vidas primitivas em planetas que visitara, mas aquela vista era a mais bonita que já havia visto em toda sua existência, ela lhe lembrava da estrela de onde viera, o Sol, que agora já não mais existia, agora mesmo ele passava perto de um planeta azul muito similar a Terra, sem nenhum sinal de vida, pelo menos não por hora. Morrer em um lugar semelhante de onde viera era um tanto quanto poético, ou pelo menos era o que ele achava.

Em último lugar, se lembrou de sua família: dos seus pais, que não o criaram com perfeição, mas o amaram durante toda a vida deles, de seus irmãos, que ele cresceu junto e amava mais do que tudo, e de seus primos, primas, tios e avós, quando tudo estava perdido -ele se lembrava muito bem- uma visita a seus familiares acendia uma luz capaz de varrer qualquer escuridão que habitasse seu coração no momento, ele se sentia querido e amado perto deles e a ideia de simplesmente nunca mais os ver o atormentara momentos antes da sua decisão de partir. Agora, em seus últimos momentos, ele percebeu o quanto fora egoísta, todas essas pessoas que se importara com ele, todo o amor que tinham por ele, ele simplesmente abandonou e ignorou em busca de um sonho que, no final das contas, não era absolutamente nada perto deles.

O arrependimento dominava sua cabeça e o atormentava, ele olhava ansiosamente pelo painel de notificações, mas nenhuma mensagem aparecera lá. Ele fechou os olhos e soltou um longo e doloroso suspiro, abrindo-os novamente e engatando com força uma alavanca do lado de sua cadeira.

A nave impulsionou repentinamente com uma aceleração avassaladora, se aproximando da estrela e, quanto mais perto chegava, mais poderosamente era atraída pela gravidade do enorme corpo celeste, sua carapaça entrava lentamente em fusão e alguns pedaços se soltavam e sumiam para trás em instantes. No último segundo possível uma notificação chegou na tela da astronave, embora ele já tivesse certeza de quem era, o ambicioso astronauta mesmo assim se virou para ver quem havia mandado sua inesperada mensagem e, ao ver o nome que aparecera na tela, abriu um leve sorriso, desintegrando-se com sua enorme nave milésimos de segundos depois e se tornando um só com a enorme estrela e o vasto universo, como sempre quisera.

A Antologia do Caos Onde histórias criam vida. Descubra agora