Mentiria se dissesse que já estava acostumado. Três meses não foram o suficiente para aprender a lidar com aquilo.
— Oi, mãe! — respondi somente e me encaminhei para meu quarto.
Esperaria até que aquele homem voltasse para o serviço e só então sairia dali.
Me deitei na cama e chequei meu celular. Nada de muito novo, como sempre. Exceto o "oi" de Sthepany. Passei meu endereço para ela, que respondeu "ok". Assisti vídeos aleatórios até que alguém bateu na porta. Sabia que era minha mãe. Não poderia ser ninguém mais.
Deixei que ela entrasse e me sentei. Ela sentou na beirada do colchão, com o mesmo rosto piedoso e passivo de sempre.
— Sabe que ele não quis dizer aquilo, não sabe? — A mesma pergunta de toda vez. — Seu pai ama você.
— Deve amar, sim...
— Sei que o jeito dele é bruto, mas ele só quer o seu bem.
— Se ele quisesse o meu bem, no mínimo, me respeitaria.
— Ele teve uma criação diferente. — Já estava de saco cheio daquele argumento.
— Não justifica, mãe. Não justifica.
Ela respirou fundo. Nunca havia elevado a voz contra o marido. Nem mesmo para defender seu filho. Eu não sabia como me sentir com aquilo. Sei que ela queria evitar confronto, não queria pôr mais lenha na forgueira. Mas... eu era seu filho.
As mães não têm que defender seus filhos?
Ela encarou o chão, ao invés disso.
— Seu pai já saiu para o consultório — informou, levantando-se e saindo.
Bom, aí eu fui almoçar. A comida estava uma delícia. Dona Neuza tem mãos de fada.
Mas não acho que essa parte seja muito útil para a narrativa, então, vou aproveitar esse momento para explicar a trama por trás do episódio de hoje de Casos de Família.
Era uma vez, em uma linda tarde de verão, um adolescente que foi pego desprevenido quando os seus pais o chamaram para uma conversa séria.
Eu suei como um porco porque não era qualquer conversa. Era aquela conversa.
Sexo? Não.
Faculdade? SIM!Eu tinha acabado de terminar o segundo ano. Meu pai e minha mãe me olhavam com olhos que diziam "e aí, o que vai ser?"
Bem, eu sabia o que iria ser. Sabia muito bem. Por isso, respirei fundo e disse a eles, com toda a convicção do mundo "física".
Minha mãe apenas assentiu. Meu pai não soube disfarçar a surpresa e, abre parênteses, foi nesse momento que descobri que meu pai não conhecia o filho que tinha.
Digo, era só dar uma olhada no meu quarto. A foto de Marie Curie, o telescópio que pedi de natal, a sessão na minha prateleira dedicada a Stephen Hawking e todo o resto deveriam dar, pelo menos, uma dica.
Mas, não.
Passada a surpresa, ele tentou dizer que eu poderia trabalhar para o governo. Conseguir um cargo importante. Ganhar um Nobel, algo do tipo. E foi bem aí que tudo deu errado porque eu fui obrigado a ser mais claro.
"Não, pai. Eu quero ser professor. Professor de física", foram as palavras que o fizeram partir para a gritaria.
Tive que aguentar vinte minutos de berros sobre como eu estava sendo burro e jogando meu futuro no lixo. Sobre como todo o investimento dele na minha vida havia sido em vão.
Mas a grande questão não era a minha vida. E, sim, o ideal dele de como deveria ser minha vida.
Uma vez, quando tinha oito anos, consertei o braço de uma boneca de uma prima. Disse aos meus pais que seria legal trabalhar com crianças. De algum modo, meu pai se convenceu de que eu seria pediatra.
Se não, alguma outra carreira na área da saúde, para completar a família perfeita, já que eles eram: o brilhante doutor (sem doutorado) César Leone, neurologista, e a bela doutora (pelo menos tem pós-graduação) Renata Leone, dermatologista.
Professor? Não parecia encaixar.
Ele me disse que eu iria manchar o nome da família. Ele amava o "prestigiado" sobrenome italiano. Agia como se fossemos descendentes de alguma família importante e não de imigrantes, pobres trabalhadores rurais.
Falando sério, eu estava esperando que ele começasse a cantar:
"Vergonha, desgraça, humilhação para toda uma raça!"
As vozes em minha cabeça já estavam prontas para cantar o coro:
"Ele não é um de nós"
E, se você, meu caro leitor, acha que eu estou sendo dramático, saiba que fica pior.
Em meio à toda a confusão, aconteceu mais uma coisinha para terminar de arruinar aquela tarde de verão. Uma finalização como cereja sobre bosta.
Crise de ansiedade.
De repente, eu percebi que estava focado demais na minha própria respiração. Então, eu já não sabia como respirar. Também não lembrava mais como se controlava meu próprio corpo. Minhas mãos e meu maxilar tremiam incontrolavelmente, o frio em meus pés não tinha explicação nenhum e meu coração nunca antes havia batido tão rápido.
E eu chorei.
Céus, como eu chorei.
Tudo o que eu queria fazer era correr para a varanda do meu apartamento e me jogar lá de cima, do nono andar.
Não deu tempo de fazer isso.
Quando vi, já tinha um aparelho de pressão envolto em meu punho.
16/9. 157 bpm.
Chegamos ao pronto socorro em menos de dez minutos. E, naquela semana, fiz todos os exames possíveis que um cardiologista pode passar. O resultado? Um coração perfeitamente saudável. A consequência disso? Encaminhamento para o psiquiatra.
E meu pai nunca me disse isso em voz alta, mas eu tenho certeza absoluta; ele preferiria que eu tivesse um problema de coração.
Seria mais fácil para ele. Arrisco dizer que, seria mais para mim também.
Todos os olhares que ele me deu desde então, não reconhecendo aquela criatura frágil, fraca, fresca e melindrosa que um dia foi seu filho.
Agora, tudo o que ele via era um bebê chorão que levaria uma vida de fracassado. Quanto ao último ponto, ele teve fé que eu mudaria de ideia quando ameaçou me trocar de escola.
"Quero que sinta o gostinho de como vai ser sua vida deprimente e básica daqui pra frente. Trabalhando em uma escola ferrada e calorenta, ganhando um salário de merda", foi o que ele disse.
E ele teve fé até o primeiro dia de aula, quando eu me arrumei e fui com toda determinação que havia em mim.
Ele leu aquilo como uma declaração de guerra e, confesso, eu também.
Eu sei das condições de trabalho. Já sabia antes de estudar naquela nova escola. Sei quanto é o salário. Sabia que não iria desfilar por aí de Corolla. Até poderia ser um professor universitário, mas essa não era minha principal meta.
Nunca tive certeza de muita coisa na vida, mas tinha a certeza de que amava conhecer os segredos e as leis do universo. E mais do que isso, amava que outras pessoas soubessem também. Gostava de contar isso a elas. Gostava de aprender e de ensinar.
Todos merecem conhecer o tempo. Tudo o que queria era tornar a física fácil, atrativa e acessível para todos.
Há algum crime nisso?
Porém, todavia, entretanto, devo encerrar esse assunto por aqui, porque algo que, de súbito, tornou meu dia bom aconteceu enquanto eu terminava meu terceiro prato (eu disse que a comida estava boa).
Sthepany mandou outra mensagem!
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Cafeína e outros vícios
RomanceBernardo tentava, ao máximo, não odiar sua nova vida. Transferido para uma escola, com o ENEM batendo à porta, uma família nada compreensiva, e um total de zero amigos, tudo que queria era se formar de uma vez e trabalhar para construir uma vida pa...