UM ANJO CAIU DO CÉU

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Há três coisas em minha vida que jamais poderia esquecer. Eu falo do bramido do mar, do cheiro do mar e da cor do mar da Terra.

Acordar naquela manhã não foi fácil. Eu certamente gostaria de apagar aquele dia. Mas, foi ali que tudo começou.
Lembro-me que estava de bruços sobre a areia, sentindo cada onda cobrir o meu corpo até a altura do ombro. Um bicho estranho andava sobre mim quando senti mais uma onda voltar para o mar.
Achei o bicho ainda mais estranho quando o vi caminhar de lado, até que ele pudesse fugir da onda que tentava arrastá-lo.
Naquela manhã, a areia estava molhada, não apenas pela água do mar, mas por gotas de chuva. O sol forte queimava minha pele e não havia nem mesmo a marca das asas nas minhas costas. Eu estava na forma de um humano.
Quando o sol tentava secar a areia, as ondas manifestavam sua força novamente, não permitindo que o mesmo fizesse seu trabalho. Aos poucos, observando aquele lugar, pude recordar algumas coisas que ouvira há um tempo atrás. Eram as areias das Ilhas Baro. Eu sentia que sabia o nome daquele lugar.
Levantei, sacudi a areia que estava sobre mim e fitei os olhos sobre tudo que estava ao meu redor. Minha voz embargada não poupou elogios:
- Ao Altíssimo toda a Glória. Este lugar parece ser uma das repartições do céu. É perfeito!
As Ilhas Baro eram realmente "ilhas", ou para ser mais preciso um arquipélago, de três ilhas, mas essa noção eu tive depois de caminhar pelo lugar, pois elas eram muito próximas. Porém, era um lugar paradisíaco, com plantas raras e venenosas, com pássaros de cores variadas. Era muito perfeito.
Ao passo que andava, percebia muita dor no meu corpo, principalmente nas costas. Minhas pernas também não estavam tão boas. Por vezes, também jogava para fora a água que havia engolido.
Ao olhar em todas as minhas direções, fui conhecendo e também dando nome às coisas. O mar era meu norte; havia uma floresta atrás de mim, então ali determinei que seria o sul. Ao leste, enxerguei uma montanha alta, muito arborizada. Eu a admirei deveras.
- Tão sublime e verde. Devo escolher um nome para vós. Vou batizá-la de Enkeli, que significa "Anjo".
Ao meu lado oeste, uma surpresa. Era outra montanha. Era toda de pedras (digo isso no sentido de que não havia composição de terra em seu exterior, nem árvores). Ela também era mais alta e seu cume podia alcançar as nuvens. No momento, não encontrei um nome para aquela montanha.
Eu ainda sentia minhas costas doerem como se minhas asas tivessem sido arrancadas à força. Sem poder andar mais que alguns metros, caí sobre o chão e fiquei ali por um bom tempo.
No chão, consegui sentar-me, pegar um galhinho e riscar a areia.
- Precisava ter me jogado assim em terra? Doeu! - Resmunguei pela primeira vez em solo humano.
O tempo foi passando e as perguntas foram ficando cada vez mais frequentes em minha mente. Eu não tinha noção da incrível transição que os meus olhos estavam prestes a ver.
Eu ouvi falar sobre o que o Altíssimo chama de "noite" ou "trevas", mas ela parecia ainda mais encantadora. A escuridão despertou batidas aceleradas em meu coração. Era o medo de estar diante de algo completamente arrebatador. Eu vi naquele primeiro dia o Sol se esconder e as estrelas surgirem no céu. Eram muito pequenas ali. No céu, são tão próximas de nós.
A densa noite estremecia meu coração. O mar era a música daquela ilha e o vento balançava as árvores de forma que me fez lembrar o som da orquestra dos anjos.
Os meus olhos ficaram carregados e foi ali a primeira vez que senti sono. Em meio à escuridão, notei que do alto começou a brilhar uma luz dourada que rasgou o céu seguida por um raio que iluminou toda a ilha. O raio caiu em direção à ilha, como se fosse no meio da floresta. Logo em seguida, o chão tremeu e um trovão ensurdecedor se fez ecoar.
Mesmo assustado, segui aquela luz que misteriosamente podia ser vista de onde eu estava. O raio cortou a ilha e mesmo com a imensidão de árvores ao meu redor, podia ver o feixe de luz irradiar em minha direção.
Já no fim de minha caminhada, a luz estava cada vez mais forte e o meu coração estava demasiadamente acelerado. "Por Deus? Será se sou mesmo um anjo? Como posso estar tremendo de medo assim?" Pensei nisso enquanto sentia minhas mãos suarem e meus batimentos ficarem cada vez mais intensos.
Eu finalmente cheguei ao lugar. Deparei-me com um círculo formado pelas árvores e um campo aberto na dimensão de quarenta passos cobertos por uma grama muito verde. Mas, o mais impressionante estava no meio. Havia uma árvore de tronco branco e folhas azuis, como o azul do céu durante as manhãs ensolaradas.
Fiquei extasiado perante aquela surreal beleza que meus olhos contemplavam. Ela parecia ter sido obra do raio que caiu do céu. Seus galhos ainda cresciam, espalhando-se por aquele lugar, brotando folhas e frutos. A árvore exalava um cheiro agradável. Era um cheiro muito parecido com o dos campos de flores do paraíso. Era um pedaço do céu, na Terra.
Ela também tinha luz própria. Não era uma cor natural da Terra. Era algo cintilante que mudava o tom e iluminava todo aquele círculo.
Admirado, deixei que todos os meus sentidos estivessem diante daquela árvore. Eu sabia que meus olhos estavam refletindo e absorvendo a mesma luz e as cores dela. Após ficar preso naquela bela imagem que estava diante de mim, ouvi uma voz me chamar e logo reconheci:
- Caliel?
- Sim senhor, meu Arcanjo!
A luz dourada que vi cair do céu era a mesma que emanava dele. Suas asas em ouro estavam totalmente abertas, de forma que tocavam as folhas da árvore. A sua altura e forma física provavam a grandeza daquele arcanjo, e que eu não era mais aquele ser celestial.
Ele se aproximou de mim. Juro pelos céus que naquela hora descobri a sensação de ter um coração acelerado.
- Anjo Caliel, homem Caliel. Essa é a vossa forma física de agora em diante. Procuramos manter o máximo de seus traços. Você agora é metade anjo, metade homem. Isso faz com que seu poder seja limitado.
- Poder limitado? - Imediatamente questionei. - Deixei de ser Anjo?
- Em duas das vezes que chamei teu nome, uma delas te chamei de anjo. - Replicou o Arcanjo.
- Perdão, senhor. Mas, estou confuso.
Rafael estendeu a mão para um dos galhos da árvore e retirou um fruto. Era aquele fruto da mesma cor e textura das minhas asas. Rafael então continuou:
- Poderás ter os teus poderes, mas agora eles estarão em comunhão com o tempo dos homens. Eles dividem dia e noite em doze tempos cada. Terás um quarto de um tempo no primeiro dia para usar o teu poder, e assim sucessivamente. Quanto mais te adaptares à atmosfera desse mundo, mais poderás usar teu poder. Afinal de contas, essas dores e esse peso é uma reação do teu corpo, pois caíste como um meteoro.
- O senhor me jogou do céu. Acredito ser esta a melhor forma de falar. - Respondi audaciosamente.
- Eu ainda sou seu superior, Caliel. Tome mais cuidado com suas palavras.
Em silêncio, engoli seco o que ele disse e abaixei minha cabeça a fim de ouvir o que ainda ia falar. Ele, colocando o fruto na minha mão, continuou:
- Poderás comer de tudo para saciar tua fome humana nesta ilha, mas somente este fruto pode saciar tua fome de anjo. Existe também um colar em teu pescoço, com um símbolo. Todo teu poder está aí. E quanto mais os dias passarem tua força aumentará e mais anjo serás. É este o tempo necessário para que consigas conhecer o causador da tormenta no mar.
- Espere, Senhor. O que tenho de fazer com ele?
- Com o passar dos dias saberás. Mas, cuidado! Atrai-no, pois é justamente esse o motivo pelo qual tens essa forma humana. Entretanto, não deixe que ele o engane, pois é um demônio demasiadamente sagaz.
Rafael deu as costas e sumiu da minha presença, deixando-me extremamente assustado com suas palavras embaralhadas em parábolas carregadas de mistério.
Mesmo sem estar presente, pude ouvir sua voz:
- Tenha ânimo, Caliel. E trate de cobrir sua nudez. Para alguns humanos é feio e vergonhoso sair com isso entre suas pernas à mostra.
Eu havia acabado de dar uma mordida naquele fruto e senti uma profunda vergonha por estar sem minhas vestes. Eu estava nu, e não tinha percebido. Mas, o que era estar nu? Quanto pensamento novo passou pela minha cabeça em uma fração de segundos. Os anjos usam vestes. Por que estava nu? Ah sim! Eu era um homem. Mas, ele disse que humanos costumam achar estranho andar nu. Mas, espera...
- O QUE É ISSO ENTRE MINHAS PERNAS? Arcanjo, volte aqui... Isso é estar nu? Meu Senhor, eu estou DOENTE???
Um riso ecoou pela ilha...
- Caliel?
- Arcanjo, não me deixe aqui com tantas perguntas. Essa coisa parece ter vida própria.
- Olha Caliel... só queria deixar bem claro que sua queda do céu foi linda e foi pra doer mesmo.
Notei então que havia uma peça de roupa encostada na árvore. Era apenas calças para as pernas. Uma roupa leve para o calor que fazia na ilha. Haviam também cobertas e camisas para o frio.
Sobre o fruto, notei que era bem diferente das outras que existiam na ilha. Se assemelhava às frutas do céu. "Ora, se é alimento para um anjo, deveria ser mesmo do céu". Me levantei e comecei a viver aquela vida.
Peguei uma pedra e a amolei. Fiz uns cortes em minha roupa, para que ficasse bem ajustada em meu corpo. Notei que meu corpo era muito belo e fiquei um tanto orgulhoso por isso.
Fiz com pedras e folhas alguns adornos. Inclusive para minhas orelhas, como sempre gostei de usar no céu.
Caminhando por ali, percebi que a árvore ficava em um relevo um pouco mais alto e um chiado que não vinha do mar me atraía. Aquele chiado era de um riacho que eu pude ver que saía das raízes daquela árvore. Foi ali que pude ver um pouco mais da minha face e do meu corpo, pois a água era tão limpa que podia refletir a minha imagem.
Aquele parecia ser o lugar perfeito para mim. Então, escureceu e eu voltei até a árvore, sentei e tentei relaxar diante de tudo que estava acontecendo. A luz da árvore irradiava todo o meu ser. Enquanto isso, o colar pulsava e brilhava sobre o meu peito, de forma que eu podia sentir poder em mim. Aquela foi a primeira noite, foi a primeira vez que meus olhos ficaram pesados e eu dormi.
Algo me dizia que o dia seguinte me proporcionaria uma experiência que marcaria aquela estadia na ilha.

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