LUA CHEIA

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Se todas as primeiras impressões fossem de fato permanentes, ninguém deste mundo mortal saberia o que é o amor

O meu corpo, cansado, despertou com um forte sol que abriu espaço entre as folhas da árvore até chegar em meu rosto.
Levantei dali, um pouco atônito. Fui até a praia. Procurei algo para comer, mas não consegui me saciar com algumas frutas que colhi. Eu precisava recorrer a outros alimentos. Percebi que o sol estava em cima de mim, então a metade de luz daquele dia já havia partido.
Ao admirar aquela paisagem, notei que ao meu leste, em uma das ilhas havia uma grande montanha. A sua forma lembrava o lugar onde eu vivia no céu, sua cor era verde, pois havia muita vegetação.
Do outro lado, a oeste, havia outra montanha, que tinha uma forma quase triangular e achatada na parte de cima. A sua cor era escura, tinha um relevo ressequido na parte de cima e como o sangue manchado sobre a água do meio para baixo, deixando um ar sombrio naquele lugar. Impressionado, fui até o limite da ilha central. Um pequeno trecho de água separava aquelas terras. Aquela era uma montanha que dominava quase toda a extensão da ilha.
Fui ao encontro dela, mas quando vi sua altura de perto, desisti de escalar. Me veio a vontade de voar e lembrei que em meio às frutas que comi tinha aquela da árvore especial. Foi então que, ao mordê-lo, senti que havia poder em mim e minhas asas rompiam minhas costas.
Mas, eu não contava com a reação daquele fruto. Era uma dor aguda, como se estivesse arrancando minha pele, e de fato estava. Eu podia sentir meus ossos por dentro se abrir, dando espaço para aquele poder angelical. Eu logo caí no chão, gritando de dor e sentindo o sangue banhar meu corpo. "Deus, será sempre assim?", pensei. A dor então foi aliviando e pude ver a sombra delas cobrindo a extensão de dois braços à minha direita e à minha esquerda. Meu rosto brilhava e eu ganhava uma força imensa.
Algo que era tão natural no reino do Altíssimo se tornou novo na Terra para mim. Voei até o cume da montanha, experimentando a sensação de voar. Foi a primeira vez que usei o primeiro quarto de tempo do meu poder.
Lá de cima, pude ver as outras duas ilhas. De lá também, via a árvore que passei a chamá-la naquele mesmo dia de Silvet, que significa "asas".
Aos poucos, meu poder angelical retornava para dentro de mim e a noite chegava mais uma vez. No entanto, havia uma claridade vindo de algum lugar da ilha, mas não sabia ao certo de onde. Meu colar pulsava demasiadamente. Foi então que notei uma grande bola refletida na água do mar. Olhei de imediato para trás e a vi. Era a regente da escuridão, era o astro, imenso e imponente em seu tamanho e luz. Dentro de mim, podia sentir a presença dela, a Lua.
Senti que meus olhos absorviam o seu poder e magnitude. A Lua vista dali era linda e assombrosa. Era de arrepiar. Estava eu completamente extasiado. Mas, aquela Lua não foi a única surpresa da minha noite.
Ouvi um som que vinha da margem da praia, uma música agradável e parecia um instrumento de corda, um violino. Do alto da montanha, podia ver duas luzes além da Lua. Uma era de Silvet. A outra era muito pequena, da cor do mar sob a luz do dia. Silvet não se movia, mas aquela pequena luz sim. Aos poucos, percebi que a luz não se movia sozinha, mas havia um vulto levando-a.
Fiquei ouvindo a música, não estava distante dali, afinal, as ilhas não eram grandes. Eram apenas separadas por um pequeno canal de água salgada. Logo percebi que a música se aproximava da ilha da montanha leste.
Tentei usar o poder de enxergar como uma águia, mas não era mais possível. Aquela música me deixou fascinado, pois eu podia me perder aquele suave toque.
A luz parou na beira da praia, a música também. Foi ali que, involuntariamente, deixei que uma pedra caísse e aquilo foi o suficiente para a música parar. O silêncio pairou naquele lugar onde apenas o barulho das ondas pôde ser ouvido. Por um instante, ouvi o som do silêncio. Era o ensurdecedor barulho do nada. Era a sensação de ser mortal e sentir o gélido arrepio da morte.
O silêncio deu lugar a pisadas sobre a montanha. Ao mesmo tempo, as árvores se mexiam, sem a ação do vento. O medo tomou conta do meu ser e pude me ver ameaçado por uma força sombria. Em um relance, em um piscar de olhos, senti uma mão forte agarrando meu pescoço e arrastando-me pela montanha.
Na força que fui lançado, senti como se minha pele estivesse soltando-se do meu corpo. Eu não conseguia ver quem estava fazendo aquilo. Até perceber a figura de um homem.
De repente, fui lançado de cima da montanha em direção às árvores que haviam embaixo. Um medo profundo invadiu o meu coração. Eu podia sentir o sangue escorrendo de dentro de mim.
Quando abri os olhos, percebi que estava imóvel. Tentei gritar, porém foi em vão.
- Arcanjo Rafael, Arcanjo Rafael - gritei.
Aos poucos, consegui mexer meu pescoço e um pouco conturbado, tentei empurrar a minha mão direita contra o chão para me levantar. Porém mais uma vez foi em vão. Eu estava de fato imóvel.
Então, o violino tocou novamente, dessa vez distante. Mas, era um distante se aproximando. Se aproximava lentamente, lentamente. E de repente, um pouco mais rápido e bem mais rápido. Depois, lento novamente.
A música ganhou um tom macabro. A minha pulsação e os meus batimentos correspondiam à velocidade e proximidade daquele som. Foi então que vi, e foi aquele homem que jamais poderei esquecer.
Era um homem franzino, de ombros largos, corpo desenhado pelos céus.
Notei que ele segurava o violino em sua mão. Aquele instrumento era tão belo, pois quando ele mesmo tocava, suas cordas pareciam emitir luzes.
A lua ajudou para que eu visse a figura daquele homem, mas ele também tinha uma luz em forma de pedra em um colar sobre seu pescoço. Era uma pedra azul que refletia a luz celeste do céu sob a força do meio-dia.
De repente ele parou, manteve-se de pé na beira da praia, mas sem tocar o seu instrumento. O homem ficou parado, estático e enfim consegui enxergar através da distância. Meu olhar foi em direção ao seu olhar e pude ver seu rosto. Tinha o cenho franzido e um jeito ríspido que me deixou ainda mais tenso.
Ele pareceu ter notado minha constante observação, pois bastou um desvio do meu olhar e aquele homem sumiu do meu campo de visão.
O profano ser que havia roubado minha atenção havia desaparecido como o vento que pairava sobre mim. Posso dizer que enquanto homem/anjo, aquela foi uma das maiores agonias que vivi, pois o pior que pode acontecer em uma ameaça é quando não encontramos o inimigo que está ao nosso redor.
A música do silêncio se fez presente mais uma vez até que o violino pôde ser ouvido do outro lado da ilha, sendo tocado por alguns segundos e então parou novamente, voltando ao silêncio.
Foi então que tocou a segunda vez como se estivesse no meio da montanha e parou mais uma vez. Aquele foi o último e agoniante silêncio.
Minha respiração aumentou. Meus batimentos ficaram acelerados e aos poucos eu perdi o controle do meu ser. A música daquele violino tocou pela terceira vez. E apenas quatro dedos de distância dos meus ouvidos, eu consegui abraçar o gelado medo que dominava a minha alma fazendo e arrepiar os fios de cabelos. Até que a música terminasse de tocar.
Devagar, direcionei minha face para o céu e o vi frente a frente. O primeiro contato foi dos piores. Ele pôs um dos pés sobre o meu peito e apertou com força.
Com suas mãos e unhas afiadas, segurou em meu pescoço.
Eu podia sentir suas unhas penetrando minha pele rasgando cada pedaço de carne que encontrava. Ele pairava sobre mim sentindo meu cheiro, como se fosse um dos animais da ilha. Fazia isso sempre sem desviar os olhos dos meus.
Procurei fixar minha visão em direção à lua, mas ele fez eu sentir a dor de suas unhas ainda mais forte.
A lua cheia brilhava em toda sua força e foi então que notei que aquele homem parou de apertar meu pescoço e ficou admirando alguma coisa. Logo senti que era o poder da lua, pois ele mirava meus olhos da mesma forma que os outros anjos admiravam a mudança da tonalidade deles.
Aquela criatura começou a falar umas palavras estranhas, um idioma desconhecido para mim. Ele parecia estar fazendo uma pergunta pelo tom agressivo, que saía de sua voz, a única palavra que soou fluentemente foi: Enkeli. Repetiu a mesma palavra por três vezes.
Eu sentia que aquele seria o fracasso da minha missão. Mas da lua senti uma energia fluindo em forma de raios que caíram sobre o mar e sobre a ilha. Eu não sabia dizer de onde vinham aqueles raios porque não havia uma nuvem no céu.
O homem então levantou-se e ficou assustado com o barulho que vinha do céu e das luzes que dele caiu. Do alto da montanha riscando as pedras com uma espada, desceu aquele de asas em ouro, o arcanjo Rafael.
Foi ali que o misterioso homem, com a velocidade infinitamente superior à dos anjos, conseguiu correr e se esconder no meio da mata. Quando o Arcanjo veio até a mim ouvi apenas o barulho de uma queda e o barulho de um mergulho no mar.
Rafael tirou de dentro de sua armadura uma folha, uma folha azul da árvore Siivet.
O Arcanjo colocou aquela folha sobre o meu peito, pois eu estava ferido queimando em febre. Foi através da folha que foi curado.
Depois dali, caí em um profundo sono e só acordei com o cheiro delicioso que deveras atraiu o meu sentido olfativo.
A noite havia passado e eu abri os olhos.
Com uma grande camada dourada sobre mim, senti que o arcanjo Rafael e suas asas me protegiam da força do sol enquanto eu chamava pelo seu nome.
Eu me encontrava na beira da praia e ele, com uma pequena fogueira e peixes espetados nela cantava uma música. Ao olhar para mim, com um sorriso encantador, disse:
- Coma, Caliel.
- Arcanjo? São peixes. Não posso ingerir nenhuma criatura do Altíssimo.
- Vamos, anjinho. Sua metade humana precisa de comida de humanos.
Aquela noite havia me dado uma fome terrível e não mais hesitei pelo que o Rafael ofereceu.
- Calma, Caliel, não é assim também. Por que tudo que fazes é exagerado? - falou ao me ver comendo rápido demais.
Rafael recolheu suas asas e continuou assando os peixes para mim, enquanto eu ficava procurando em minha memória tudo que havia acontecido na noite anterior.
Olhei para a ilha da montanha leste e de imediato, os olhos daquele homem vieram à minha mente. Lembrei da palavra que ele disse quando olhava para mim. Enkeli! Essa é a explicação pelo qual nomeei a montanha assim, pois veio da boca dele a palavra que logo eu descobriria que o significado era "anjo". Chamei aquela montanha de Enkeli, que significa "anjo".
Com as lembranças ruins, Rafael percebeu meu semblante e disse:
- Ainda não é tempo de eu capturá-lo, pois como vistes, ele é muito veloz e astuto. Ele ainda precisa ser estudado por nós.
Uma infinidade de cenas começaram a rodar em minha mente. Até que fui invadido por uma lembrança que me fez interromper a fala do Arcanjo.
- Os olhos.
- O que tem os olhos?
- Os olhos sombrios são os mesmos que vi naquela visão, ainda no céu.
Rafael ficou a me olhar como se soubesse que aquilo já fosse uma verdade absoluta. No entanto, na minha visão, ele tinha cauda como uma cauda de peixe. Agora eu o vejo com pernas.
Após eu terminar essas palavras, o Arcanjo levantou-se e andou de um lado para o outro. Parou encostou a mão sobre o queixo e disse:
- Escute bem, Caliel O que você contemplou em sua visão e o que você presenciou na noite anterior é real? Ambos são a mesma pessoa?
- Explique melhor, Arcanjo.
Rafael sentou-se no chão, começou a riscar o chão enquanto contava uma história.
- Existe uma lenda. Um mito, um ser simbólico e diabólico, cujo rosto e canto podem ser encantadores e até seduzir, mas a morte é a única oferta desse ser. Povos antigos contavam que havia uma casta de criaturas marinhas demasiadamente poderosas. As sereias, majestades das águas e de um canto doce. A figura masculina é representada pelos tritões, que são os protetores dos mares que usam encantamentos através de conchas e instrumentos feitos à mão para desviar e matar qualquer ameaça. Eles se alimentam de elementos da natureza. Eles expressam seus sentimentos na força das águas e na velocidade do vento, no monte ardente que está no teu Oeste e no chão que estás a pisar.
- Monte ardente?
- Sim, Caliel. Ali não é uma montanha, é um vulcão.
Na minha mente não havia nenhuma chance para um anjo como eu vencer aquele demônio. Comecei a desacreditar e ver que foi um erro ter sido escolhido como representante daquela missão, eu seria facilmente esmagado por aquele tal Tritão.
Minha reação foi imediata e atrevida.
- Arcanjo seja sincero. Eu não tenho capacidade para enfrentar esse demônio.
- Calma, Caliel. Tu não irás enfrentá-lo. Tu foste escolhido para chamá-lo, enfraquecê-lo. Descobrir seu ponto fraco, até que eu venha com minha horda e mate-o.
- Então por que o senhor não enfrentou logo ele?
Rafael voltou-se para mim, com o semblante franzido e encostou a sua testa em minha testa. Para os anjos, aquilo era um sinal de autoridade sobre o outro. É um tipo de afronta, uma forma de dizer: eu sou mais forte e mais poderoso que você.
Mesmo assim, tentei manter o semblante e a cabeça firme, mas a autoridade do Arcanjo pesou sobre mim, eu sentia meu corpo tremer. Minha cabeça arrepiava e eu senti isso correr até a ponta do pé. Foi então que caí de joelhos perante ele.
Rafael estendeu a mão sobre mim. E eu podia sentir o meu coração parar de bombear sangue. Minha pele começou a secar como se fosse uma terra rachada pelo sol.
Cada vez mais fui perdendo a visão. Foi um pesadelo vivido por poucos segundos até que o Arcanjo falou:
- Anjo! Tu achas que és sábio? Porém é inferior a isto. Não esqueça dos anjos que desceram ao abismo. Miguel derrotou milhões e eu tenho o mesmo poder que Miguel para destronar qualquer resplandescente.
Senti meu corpo retornar ao normal. Até que ganhei forças novamente para abrir meus olhos.
Rafael estava em sua forma angelical e eu mal conseguia ver minhas pernas. Ele desapareceu e eu fiquei pensativo diante do que havia sentido.
Tirei de dentro de mim uma força inesgotável e inexistente. Eu precisava levar a minha missão até o fim. Olhei para o céu, o sol estava coberto por uma nuvem naquele momento. Eu confesso que estava deveras ansioso pela chegada de mais uma Lua.

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