UM SERVO DO ALTÍSSIMO E UM SERVO DAS ÁGUAS

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Eu era um anjo, mas me comportei igual aos homens. Eu mal podia imaginar que aquele fora o último dia em que verdadeiramente eu havia sido ungido pelo Altíssimo.

Corri assustado em direção a Silvet. Meu coração pulsava diante do que pudesse ter acontecido, mas ao chegar ao meio da Ilha vi que a árvore estava como uma fogueira. Um calor imenso podia ser sentido, mas ela não se consumia com o fogo.
Na ocasião, pensei que o arcanjo Rafael haveria de me visitar, mas aos poucos, Silvet voltava o brilho cintilante natural e o meu coração se acalmava, na esperança de tudo estar normal.
Naquela noite não dormi. Minha expectativa estava pautada na espera de Rafael, mas eu não imaginava que estava participando de uma etapa minha, muito importante. Era o princípio da minha mudança. Seguindo a ordem natural das coisas, a metamorfose não existia apenas para as borboletas.
Queria poder contar a beleza que pude contemplar com os meus próprios olhos, mas aquilo já não parecia bom.
Durante aquela noite escrevi tanto... Descrevi quem era Leone, deixei claro a força que foi olhar em seus olhos e que não consegui esquecer a figura daquele homem com cauda de peixe. Seu olhar cheio de mistérios atravessava o meu raciocínio. Seu encanto me atormentou por toda madrugada.
Quando a lua estava em cima de Silvet, eu senti que era o momento de orar. Eu até tentei me conectar com o Altíssimo, mas não consegui. Tentei dormir, mas também não obtive sucesso. Comi do fruto e ao menos isso funcionou, pois senti a minha estrela brilhar e o meu poder se renovar. Entendi que tanto eu quanto Leone tínhamos um amuleto sobre o pescoço. Ele tinha uma pedra e eu uma estrela. Cada um de nós tínhamos um laço com algo maior.
Nessa confusão, percebi que o dia já estava amanhecendo. Voltei para praia e tudo parecia meio diferente de antes, até mesmo o barulho das ondas. O sol naquele dia havia sido coberto por densas nuvens. Parecia que as trevas não queriam deixar que a luz brilhasse.
Com um frio de arrepiar o íntimo coração, me senti sozinho naquela enorme ilha. Tive esperanças de dormir e acordar com Leone ao meu lado. Com os olhos carregados, de fato dormi, porém acordei com uma solidão ainda maior.
O dia estava cada vez mais escuro; os céus diziam que uma forte tempestade viria. As fortes chuvas poderiam ser normais em qualquer lugar do planeta, menos nas Ilhas Baro. Algo acontecia no mar e não era normal.
Me preparei para voar em direção ao meio das águas, mas virei em sentido à montanha oeste.
Fiquei pensativo com o nome daquela montanha e percebi que ela não tinha nenhum nome. Por um momento fiquei pensando, até que recordei uma palavra que Leone disse enquanto estávamos juntos.
— Merenmies. Você montanha do Oeste, será chamada pelo nome Merenmies, pois teu mistério me faz recordar aquela criatura do mar.
Uma das coisas que o arcanjo Rafael não sabia é que na visão que tive nos céus, eu ouvi uma voz falando: Enkeli, Enkeli. Por esse motivo dei à montanha do leste esse nome. Assim, a montanha do Leste passou a ser uma homenagem a um anjo e a montanha do Oeste tornou-se uma homenagem a um Tritão.
Quando minhas asas se abriram e conforme a velocidade firme do meu voo, percebi que meus poderes estavam cada vez mais fortes. Aquele dia foi importante, pois o meu tempo como anjo estava bem mais longo e na ocasião eu tinha noção do meu tempo. Sabia exatamente quando iria acabar.
Ao passo que voava sobre as águas, notava que a calmaria do oceano se tornava uma imensa agitação. Uma neblina surgiu a certa altura e um cenário de raios e trovões completavam o clima daquele dia.
Na direção do Norte, avistei a forma de uma embarcação. Uma cena sombria estava na minha frente. Era um navio que se aproximava e havia homens parados na beira daquele navio. Eu podia estar ficando louco, mas eles pareciam estar prontos para pular.
Imediatamente, recordei a visão que tive nos céus. Aquela cena se repetia, mas dessa vez, era real. Podia sentir o frio, o medo, a maldade bem mais intensa.
De repente, um homem, dois, três homens caíram sobre a água...Quatro, cinco, seis marujos desciam sem rumo.
Eles pareciam não ter controle sobre suas vontades. Notei que os olhos deles estavam completamente brancos e não havia cor em suas peles a não ser uma forma pálida, sem vida. Eles estavam mortos em vida.
Eu sentia a presença maligna de alguém e sabia exatamente o que veria, mas o meu coração (não sei por qual motivo) insistia em não querer acreditar.
Foi aí que eu ouvi o som do violino que tocava algo melancólico. Os homens pulavam nas águas ao som da música com seus pés ligeiramente preparados para a morte.
A embarcação já estava na minha frente, os homens nadando para ser o fim, mas onde estava o causador daquilo?
Minhas expectativas ganharam tons mais precisos quando vi que por trás do navio havia uma sombra que lembrava a forma humana. Apenas a parte do seu tronco poderia ser vista. Com tamanha evidência, sabia que se tratava de um Tritão. Mas, será que poderia ser Leone?
Observei que a criatura move as águas de forma que tudo parecia estar sob o seu controle. Tudo parecia obedecer a ele. Aliás, tudo parecia ser dele.
Estático, meus olhos e minha mente estavam fixados naquela sombra e na multidão de homens que o seguiam nas águas.
De repente ouvi uma voz:
— Caliel, Caliel? Você está me ouvindo? Vamos, Caliel, escute-me!
Ergui meu rosto para os céus, procurando por aquela conhecida voz.
— Arcanjo Rafael?
— Sim! Ouça-me! - respondeu ele em tom alterado. - Caliel, servo do altíssimo. Não tens forças, nem direito para destruir essa abominação, mas podes fazê-lo parar. Tu pode salvar essas vidas.
Fiquei sem reação, observando aquela imagem deveras fúnebre. Pouco dei ouvidos ao Arcanjo, que continuou a insistir, mas na ocasião, ele não parecia ser mais o mesmo comigo.
— CALIEL! Deixe sua fraqueza de lado! Tu és um anjo. Não sejas covarde em suas forças. Nem ouse ser misericordioso com esse monstro. — Esbravejou.
— Não! Eu não posso! — respondi com o semblante ríspido e com uma voz firme.
Fui tomado pela ira e pela angústia de estar sendo pressionado pelo meu general. Bati minha mão esquerda sobre as águas, de maneira que a água do mar lançou colunas em um espetáculo que assustou o tritão e imediatamente desceu por entre as águas, deixando aqueles marinheiros sobre a superfície, completamente reféns, mentalmente aprisionados.
Não tive interesse em ir em busca do tritão. Meu instinto angelical falou mais alto. Eu precisava obedecer à ordem do meu superior. Eu necessitava ser fiel ao Altíssimo.
Tentei salvar os homens, mas me permiti a enxergar uma cena que jamais seria esquecida. Estavam parados, mas não afundavam. Suas mãos, ainda imersas, partiam-se, manchando o mar azul em tons vermelhos. Eles não moviam uma pálpebra, mas seus olhos arregalados para mim pareciam gritar de dor e clamavam por socorro.
Os olhos brancos, sem vida, mortos por fora escondiam suas almas presas sentindo a dor de não estarem no meio do oceano, sentindo facas não existiam perfurando suas mãos e agonizando ao sentir os seus olhos se desmancharem em sangue.
Notei que aquela multidão de marinheiros formava um círculo no oceano. Leone olhava para mim como se dissesse: "Eu sou o dono de tudo isso! Eu sou o servo das Águas".
Depois daquela imagem, não mais os vi, nem os corpos, nem o Tritão.
Fiquei com o coração angustiado por não conseguir salvar aqueles homens da morte. Ao mesmo tempo, senti um ódio de Leone que começou a surgir no meu coração. Ele, de fato, era um inimigo a ser derrotado.
Encostando o pé nas águas, senti a

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⏰ Última atualização: Jul 24, 2022 ⏰

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