Capítulo 8 - Diário - 20 de Janeiro

9 5 16
                                    

Quando acordei hoje continuava chovendo e todos ainda dormiam, agora que escrevo estão começando a acordar, mas já é quase meio-dia. Estão sonolentos por conta da chuva. Acho que estou arrependida em nome da família por essa viagem, não tem nada para fazer aqui a não ser olhar para fora da janela. Não tem televisão, nem wifi para distrair, e não dá para ir até à praia por causa do tempo. Então vou contar o que aconteceu depois das noves horas, quando eu resolvi sair para olhar a rua:

Peguei o guarda-chuva, que tivemos que comprar porque ninguém havia lembrado de trazer um e saí (estava só chuviscando, sem raios ou coisas assustadoras). Fiquei alguns minutos parada na calçada na frente do hotel, apenas olhando os carros passarem. Era um pouco longe da praia, mas se eu me esforçasse para olhar entre os prédios à minha frente eu conseguia ver o mar se agitando. Eu estava completamente entediada, então aquilo foi o suficiente para mim. Depois de um tempo lá minhas pernas começaram a doer e eu pensei que era uma boa ideia voltar para dentro e ver se alguém já havia acordado. Só não voltei porque vi pelo canto do olho uma pessoa correndo em minha direção. Assim como ontem, meus reflexos me traíram e eu não consegui me mover rápido o suficiente para sair do lugar. Antes que eu pudesse reagir já havia alguém debaixo do guarda-chuva comigo, segurando o cabo com a mão a alguns centímetros acima da minha. Mas não me espantei porque consegui reconhecer Kadu rapidamente.

Ele estava completamente encharcado da chuva, as roupas pingando ao ponto de eu não saber mais qual era o sentido de ter um guarda-chuva sobre nós. Não tive tempo de ficar brava com ele, pois assim que chegou, Kadu me cumprimentou e me disse precisar de minha ajuda. Ele estava indo ao mercadinho localizado a algumas ruas para cima do hotel e achou que conseguiria correr rápido o suficiente sem se molhar muito (sinceramente, qualquer um poderia dizer que aquela era uma péssima ideia, acho que ele não é muito esperto). Eu não sei onde ele está ficando, mas veio debaixo, acho que não muito perto de onde eu estou, provavelmente mais perto da praia. Enfim, isso não importa, o ponto aqui é que ele queria que eu o levasse com o guarda-chuva até o mercado para que ele não se molhasse muito (mais). Obvio que neguei, eu mal o conhecia, como acompanharia um estranho por aí? Mas ele continuou insistindo sem sair debaixo de meu guarda-chuva. Não sei bem o que me fez ceder, talvez seu hálito de menta, que era jogado contra meu rosto enquanto ele falava, pois sua boca havia ficado próxima ao meu nariz, tenha feito minha mente ficar confusa.

Eu estava de chinelos, então todas as folhas (e outras coisas que nem quero saber o que são) ficaram presas em meus pés por conta da água. Kadu dava passos mais largos do que os meus e eu tive que escolher entre desviar da água e  ficar sob o guarda-chuva que ele ainda não havia soltado. Fiquei esperando do lado de fora do mercado quando chegamos (em uma parte coberta, é claro). A garoto não demorou muito para sair, mas foi o suficiente para a chuva piorar. Ele sugeriu que esperássemos até melhorar. Eu concordei, pois tinha certeza de que se descesse naquela hora perderia meus chinelos. Não espiei dentro de sua sacola para ver o que ele havia comprado, eu sabia que se me deixasse ter o mínimo de interesse ele alugaria um quartinho em minha cabeça.

Enquanto a chuva não passava, Kadu me contou que estava viajando com os amigos durante a semana de saco cheio de sua faculdade. Ele cursava engenharia da computação e tinha completado vinte anos naquele mês. Fiquei calada enquanto ele explanava sua vida toda para mim e não contei muito sobre a minha, só falei sobre minha família e menti dizendo que fazia faculdade também, não queria que ele pensasse que era melhor do que eu. Aparentemente, Kadu era uma pessoa bastante tagarela, mesmo depois que o assunto parecia ter morrido ele continuava tentando o ressuscitar.

― Você gostou da pulseira?  – Kadu me perguntou apontando com a cabeça para meu braço.

― Sim, é bonita.  respondi, com vergonha, não queria ele pensasse que eu tinha gostado tanto assim, eu havia me esquecido de tirá-la. Lembro-me claramente que ele matinha um pequeno sorriso que fazia com que pequenas rugas se formassem nos cantos de seus lábios. Quando percebi que eu estava encarando sua boca já era tarde demais, Kadu observava meus olhos. Desviei o olhar fingindo que não tinha me importando com o constrangimento, mas continuou a falar.

― Desculpa se pareceu que não me importei com o seu medo ontem, não foi minha intenção, não percebi que você estava tão assustada. É que eu tenho boas lembranças brincando na chuva quando criança, por isso achei graça.  imaginei todas as coisas que ele havia aprontado, eu não o conhecia, mas ele parecia não ter parada.

Tudo bem. falei. Você só estava tentando ajudar. Eu fiquei com medo porque me perdi da minha família."

Sem ressentimentos?

Sem ressentimentos.  eu não podia reclamar muito, ele meio que tinha me salvado. Mas estávamos quites agora que eu havia o ajudado com a chuva. Você parece que gostar de coisas radicais.  ele riu e encostou seu ombro no meu, virando o rosto em minha direção.

― Correr na chuva não é radical. notei meus ombros relaxando naquele momento, eu não estava mais tão tensa perto dele e, sinceramente, toda aquela atenção que recebi era muito agradável, mas não deixei que isso transparecesse em meu rosto.

Quando a chuva finalmente diminuiu, descemos a rua correndo. Kadu manteve seu sorriso aberto por todo a caminho de volta ao apartamento, como se tivesse se divertindo muito. Perguntei-lhe se queria levar o guarda-chuva, mas ele negou, apenas saiu correndo para que eu não insistisse e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ele gritou:

Me espera aqui amanhã à tarde, quero te mostrar um lugar.

Não tenho motivos para ir, na verdade, ele ainda era um estranho para mim, mas acho que acabei ficando curiosa, talvez seja o tédio afetando meu cérebro. O que devo fazer, Sophia do futuro?

Memórias de HojeOnde histórias criam vida. Descubra agora