Não cobre muito de mim

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"Olá, boa noite!" Cumprimento e ouço a mesma saudação como retorno. Sei que não vou obter resposta, mas prossigo ainda assim: "Tudo bem?"

Um sorriso.

Para evitar um clima ruim, falo sobre a semana. Digo como me senti e o que aconteceu de relevante, apesar de eu fazer tudo parecer dentro da normalidade.

Ela sorri de novo.

Então é a hora de eu anunciar que gostaria de falar sobre como pessoas diversas afetaram a minha vida, e de como isso reflete sobre mim. Eu pensei sobre esse assunto na terça-feira e acredito que isso vá render os 50 minutos. Talvez, aliás, esse seja um ponto positivo desse monólogo, eu sinto que consigo me autoanalisar, e acho isso incrível.

Ela gosta que eu nomeie os sujeitos. Eu não gosto. E, dessa vez, não vou nomear. Até porque serão várias pessoas a serem citadas, e essa primeira história já é muito antiga, porém ela aconteceu em um momento muito importante da minha vida.

"Eu encontrei aquele que mudou minha vida, ou fui eu que mudei, e, na verdade, aconteceu de ele chegar no momento certo?" dizia a música que eu ouvia com frequência na época.

Eu contextualizo o ano do acontecimento. Digo como me sentia, e reforço que vez ou nunca aquilo acaba voltando a minha mente. "Não há nenhum ouro nesse rio no qual tenho lavado as minhas mãos desde sempre." Admito, e continuo: "Sei que há esperança nessas águas, mas não consigo me convencer a nadar enquanto eu estou afogando neste silêncio".

"Você se sente como se estivesse se afogando..." Ela repete.

É assim que eu me sinto? Penso. Talvez eu me expresse sempre por tantas metáforas, e elas fazem sentido apenas na minha cabeça, até que alguém as repita, e elas não soem exatamente como eu as tinha imaginado. Mas sei porque escolhi essas palavras. Sempre dei segundas chances às pessoas, porém esse é um caso diferente. Eu havia feito um ultimato, e a pessoa atendido, no entanto, dias depois, ela voltara a cair nos primeiros erros.

Eu errei em não a aceitar? Isso é afogar?

Ou, então, eu acertei em deixá-la de lado, como a vida tem me mostrado que, na verdade, cativar alguém é cativar a memória de alguém? Eu tinha boas intenções e as maiores esperanças..., mas agora eu sei que isso, provavelmente, nem ficava aparente.

A nossa amizade, tão intensa, eu desprezei, coloquei de lado, e nunca voltei atrás. E se eu dissesse: "Querido, me deixe entrar"?

Eu digo isso para a terapeuta. Ela fica calada, claro. Então, como sempre, eu dou as rédeas, digo aquilo que suponho ser o que eu diria pare ele caso eu pusesse meus pensamentos para fora.

"Não cobre muito de mim, querido!" É o que eu daria a entender. É claro que eu faria tudo parecer um encontro casual, onde essa seria a conotação da conversa. Eu cumprimentaria normalmente, perguntaria sobre a vida atual e cotidiana, até que o passado inevitavelmente viria à tona. Eu aproveitaria para deixar a entender que eu ainda era uma criança, e que eu não tivera a oportunidade de sentir o mundo ao meu redor... Não tivera tempo para escolher o que escolhi fazer. Então, não cobre muito de mim."

"Como assim você sente que não teve a oportunidade de sentir o mundo ao seu redor?" Ela desmuta o microfone.

"Acho que eu sentia que, aos 17, eu sabia tudo sobre o mundo..." Eu procuro a resposta em algum lugar ao chão. "Uma arrogância como se eu soubesse exatamente o que eu tivesse que fazer. O engraçado é que eu não me arrependo de tê-lo feito, mas talvez eu me arrependa da maneira." Confesso, e me surpreendo. "Talvez eu não precisasse dar um ultimato, apontar o dedo para os defeitos que ele cometera e esperar que ele mudasse, o que eu faria hoje seria conversar numa situação oportuna, e, caso a situação não fosse contornada, eu simplesmente deixaria naturalmente a amizade morrer. Já que de fato ela, por parte dele, morreu. Eu só não, vez ou outra, me culparia por isso."

Julgo que ela não tem o que falar. Mesmo porque ela mantém o silêncio.

"Não há nenhum espaço para nossas coisas mudarem, quando nós dois estamos tão profundamente presos aos nossos hábitos. Essa é a verdade. Eu lido com a amizade sincera quando coincide das duas pessoas gostarem de fazer algo em comum, e não de se forçarem para agradar a outra. Mesmo assim, ele não pode negar o quanto eu tentei, e naquela época em que eu, apesar de tudo, nem ter certeza de quem eu era, eu havia mudado para colocar vocês dois em primeiro lugar... (E essa segunda pessoa eu prefiro comentar depois). Ainda assim, me lembro quando eu tomei a decisão e disse 'agora, eu desisto'".

"Você, então, desistiu da amizade..."

"Desisti, e não é algo que que eu faça com frequência... É por isso que ela ainda paira em minha mente. Mas, como disse, já aprendi a lição dessa história, podemos passar para a próxima."

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