Do lado mais claro da oficina, a brisa fresca entrou através da abertura na janela. Entre panos brancos com cores borradas na superfície e copos com água suja de tinta, os pincéis passavam suavemente pela tela em cima do cavalete. Ethan pousou a mão na nuca e alongou o pescoço com incômodo, virando-se para o relógio na parede e imediatamente largando tudo para correr e não se atrasar, com o diário de bordo e um casaco nos braços.
Mesmo que preferisse ficar trabalhando sozinho no ateliê a tarde toda e talvez a madrugada se deixassem, não era de furar compromisso e Mesha não gostava de esperar. Não tinha sequer lembrado de lavar a tinta das mãos, já seca na verdade, só se dando ao trabalho de refazer o coque no cabelo pelo caminho.
Os cabelos vermelhos não eram algo diferente em Dryadalis. Na cidade álfar, todos que eram de famílias de Magma nasciam com a cabeça em chamas, por assim dizer. O vermelho em Ethan não era tão vívido quanto de outros, mas num tom cansado e quase como se a chama se extinguisse, se aproximando mais da brasa. Pele retinta e olhos penetrantes de maresia, num azul tão escuro e queimado que mal era perceptível, com pouco mais de 1,80 metros de altura. Já com quarenta e dois anos, preferia ser mais reservado e cobrir os braços sempre que saía, sem exceções.
Ele se apressou pelas ruas e dobrou várias esquinas até finalmente chegar na Biblioteca de Veritas, um prédio branco de dois andares amplos, com belas esculturas e detalhes na fachada como uma grande obra de arte. Um andar de livros e enciclopédias comuns e o de cima com os arquivos mais antigos e seções de conservação, encantadas pelos álfar de Salina para criar as condições específicas que mantinham os papéis inteiros. Subiu os cinco degraus da entrada e segurou a porta para entrar na mesma hora que alguém saiu com a cara enterrada demais em um livro para notar sua presença. Poucos passos pelo enorme salão de estantes e Mesha logo se fez notável em uma das mesas. Ele se sentou ao seu lado e apoiou o casaco nas costas da cadeira, até elu dar um tapa (fraco, de brincadeira) no ombro dele e reclamar:
— Me deixou esperando por quê?
— Só cinco minutos! — exclamou, se afastando um pouco. — Eu não fico te batendo por sempre esquecer as suas coisas.
— Você é molenga. Quase vinte anos de tapões, é tradição. Seria estranho se eu parasse. O que te fez esquecer de mim hoje? — Mesha perguntou, logo deduzindo ao reparar em suas mãos.
— Não esqueci, só estava trabalhando e perdi a noção de tempo, é uma encomenda importante. Você trouxe?
— Claro que sim, não sou irresponsável.
Elu tirou um rolo de papel da mochila e passou para ele, segurando o queixo com as mãos. Tinham muitos cálculos, anotações e fórmulas, com reações nas guias. Tudo conferido duas vezes. Na metade da direita, um projeto com cada camada detalhada de um rastreador de bolso. Eram pesquisas feitas por Ethan, mas que ele não tinha certeza suficiente de ter acertado para apenas não pedir que alguém corrigisse.
— Mesha, você é um anjo da matemática! — Ele enrolou o papel de novo e sorriu. — Obrigado.
— Sei. — Elu bufou e soltou a postura, arqueando uma sobrancelha e se encostando na cadeira. — Ainda acho que você tem que desistir.
— Mesha...
— Ethan, ele é um completo babaca! Já te expliquei isso, você deveria ter dito não logo na primeira coisa que ele te pediu.
— Eu não posso, você sabe. É o mínimo que eu posso fazer, ele foi exilado por minha causa. Eu devo isso a ele.
— Não deve. E ele foi exilado pelo que ele mesmo fez! Eu estava aqui todo esse tempo, eu vi como você ficou. Eu ajudo porque não quero que você se mate fazendo isso, mas não quero que continue assim. Já passou, esquece isso, esquece ele! O Leonardo só te fez mal.
— Eu acho que fiz bem pior em duas horas do que ele em anos.
— Faz vinte anos, ele pode estar até morto!
— Se estiver, pelo menos eu vou saber.
— Ethan, vocês pararam de agir como amigos muito antes de brigarem. Ele se aproveitou de você, só isso e nada mais.
— Até onde eu sei, causar a morte do único filho dele é bem pior.
— Não tem como te convencer do contrário mesmo, não é? — suspirou, logo após um segundo de silêncio.
— Vai parar de me ajudar?
Ethan perguntou só para saber, sem tom manipulador nem nada disso. Apenas questionou do modo mais neutro possível, deixando claro que entenderia se essa fosse a vontade delu. Mesha suavizou a expressão e esboçou um pequeno sorriso. No fundo, acreditava que Ethan acabaria desistindo por conta própria de qualquer forma.
— Nunca, você é meu amigo. E se ele voltar, eu vou adorar meter a porrada.
Há muito tempo Ethan carregava uma culpa enorme nos ombros. Quase duas décadas, para ser exato. Talvez mais do que isso se a retrospectiva for maior. Até a adolescência, costumava ser muito próximo de um álfar de Salina, chamado Leonardo. Quase diria que seus pais o trocariam por Leonardo se pudessem. O menino de ouro, carismático, cachos dourados e completamente de fora desse mundo. Foram melhores amigos por muito tempo, mas se distanciaram definitivamente depois dos dezesseis. Quando se reencontraram, Leonardo pediu ajuda com algo maior do que qualquer um aceitaria fazer, considerável até como criminoso, mas Ethan não conseguiu dizer não, o que o jogou no poço mais fundo e escuro de sua vida. Se não fosse por Mesha, teria sido o mais solitário também.
Ethan tomou a decisão de falar com as autoridades sobre isso. Sabia que não podia resolver. No mesmo dia, viu Leonardo pela última vez em sua vida, embora não soubesse disso ainda. O que chegou em seus ouvidos foi simplesmente que Leonardo tinha sido expulso da dimensão, exilado para sempre, sem magia, sem como voltar para casa. Por culpa dele.
Desde então, sem poder contar com poderes de dragão e os muito úteis e convenientes portais, pesquisou e construiu incansavelmente qualquer amuleto ou tipo de ferramenta que permitisse que ele abrisse um caminho para encontrar Leonardo e talvez trazê-lo de volta. E depois de tantos anos e noites em claro, cicatrizes, choro e angústia, será que valeria a pena?
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Draconis | Do que você é capaz?
Fantasy[DEGUSTAÇÃO] Vinda de um mundo onde a magia não existe mais, uma nova terra é apresentada para Ully após um pequeno acidente. Rodeada de perigos, a garota se encontra presa em um lugar conhecido por abominar a espécie humana em todas as suas formas...