1. Como todos os outros dias

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Subindo a escada de madeira com rodinhas apoiada na estante, os degraus produziram um ranger curto e seco a cada passo debaixo dos tênis

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Subindo a escada de madeira com rodinhas apoiada na estante, os degraus produziram um ranger curto e seco a cada passo debaixo dos tênis. Afastou as pequenas pilhas de quatro ou cinco livros com cuidado e passou um pano úmido na prateleira. Seu nariz se incomodou com o pó e o cheiro de tinta. Espirrou. Ully coçou o nariz com o pulso e arrumou os livros no lugar mais uma vez, segurando bem a escada para não tropeçar lá de cima. Lavou o pano nos fundos e voltou para o meio de estantes da biblioteca até o balcão, passando as mãos suavemente pela lateral da calça pelo hábito.

— Mais alguma coisa que preciso fazer por enquanto?

A bibliotecária tirou os olhos dos documentos para a assistente e ajustou os óculos dourados no lugar. Era uma senhora nada simpática.

— Creio que não, eram só essas seções mesmo.

Ully assentiu com um sorriso e voltou para a rotina da biblioteca, fazendo pequenos ajustes no cabelo para ter certeza de que estava tudo no lugar. Não tinha se atrasado dessa vez, mas era melhor manter a chefe de bom humor diante de atrasos repetitivos nos últimos dias, principalmente por ela já não ser tão tolerante.

A biblioteca era realmente uma graça e muito charmosa, mas não muito requintada. Todos os livros levavam um carimbo na primeira folha, com uma árvore de salgueiro estampada. As estantes de madeira escura se alinhavam quase perfeitamente, formando vários corredores que se empoeiravam facilmente, para a infelicidade de Ully. Trabalhar lá não era difícil, agradável até. Falar com as pessoas não era muito necessário, mas nada de outro mundo se fosse o caso. Na verdade, ela quase desejava que as pessoas falassem mais, talvez sobre o que estavam lendo ou que ficassem mais entusiasmadas quando conheciam seu livro favorito. Não imaginavam a sorte que tinham em poder ler qualquer coisa dali com um simples cartão.

Ao passar por uma janela, pôde ver as folhas bem verdes em uma árvore. Mesmo um pouco nublado, pela cor do céu já soube que logo seria liberada do expediente, não estava muito iluminado. Quando chegou a hora, tirou a plaquinha do uniforme e pegou o caminho para casa. As ruas eram muito bonitas e carregavam vários fios de luz pelos restaurantes e seus cantores de rua, mesmo fora da temporada de turismo, que geralmente lotava absolutamente cada centímetro da cidade no inverno. Algumas lojas já incomuns ainda existiam, como o velho antiquário. Costumava ter pratarias, poltronas velhas com estampas cafona e peças de louça, mas nesse dia ao passar na frente da vitrine, algo capturou seu olhar.

Se aproximou imediatamente do vidro e se conteve ao máximo para não encostar. Não conseguindo identificar o que era, entrou para ver melhor. Assim que passou pela porta, algo tilintou sobre sua cabeça. O sino tocando fez seu sangue ferver de vergonha e o rosto estava mais quente do que panela de pressão no fogo. Morria de medo de gaguejar se algum funcionário viesse falar com ela, mesmo que fosse só um cumprimento, especialmente se fosse aquele estagiário bonitinho.

Logo se apressou para dentro antes que alguém a visse na entrada, se deparando com uma estátua de pelo menos trinta ou quarenta centímetros de altura que a fez interromper a pressa. Era prateada, em laminado envelhecido. Nunca tinham estátuas ali. Um dragão saía da pedra com garras a mostra e asas abertas, tão vivo que poderia jurar que alçaria voo. Ully admirou a estátua por longos minutos, vendo cada escama e garra cuidadosamente contornadas. Tinha uma pequena obsessão por dragões desde pequena, fascinada por suas histórias heroicas e existência não-comprovada. Era óbvio que uma estátua tão bonita fosse servir de armadilha para ela.

— Precisa de ajuda?

Ully quase pulou de susto. Se virou para o atendente atrás dela com um sorriso sem graça, vendo o garoto ajustar os óculos no nariz, de cabelo escuro e cacheado com um sorriso simpático e suave no rosto, marcando uma dobrinha no canto da boca e usando o uniforme cinza do lugar. Droga. Era mesmo o estagiário bonitinho.

— Só dando uma olhada. De quando é essa peça?

— Putz... — Ele estreitou os olhos e se virou para um outro alguém, que também não soube responder. — Na verdade, não me lembro de sequer receber isso. É um antiquário bem cafona para ter conseguido algo assim.

Ully conteve um riso. Concordava, mas não queria falar mal do local de trabalho dos outros. Ele pegou a estátua e virou para procurar uma etiqueta, mas não estava registrada.

— Então, já decidiu o que quer cursar? — ele perguntou, enquanto reajustava o dragão no lugar.

— Na verdade, não. Estou bem na biblioteca por enquanto. E você?

— Provavelmente vou acabar tendo que fazer faculdade onde meu pai quer de qualquer jeito. Mas enfim... Não sei de onde essa coisa veio. Você gostou?

— Da estátua? — Ela colocou as mãos nos bolsos, balançando levemente nos calcanhares. — Talvez, mas não pode me convencer a levar algo sem um preço devidamente justo.

— Como se eu fosse tentar te roubar. — Caçoou.

— Roubaria sim. — brincou.

Ele riu e Ully se virou na direção da saída com um aceno.

— Então nos vemos algum dia desses. — disse o rapaz, buscando seu rosto entre as prateleiras.

— Não se preocupe, vou cobiçar bastante essa estátua.

Ela passou pela porta de vidro apressando o passo até em casa, já pensando em como não deveria ter feito piada sobre o preço ou sobre roubo ou sei lá, que deveria ter falado nada. Não que eles fossem estranhos, mas não tinham intimidade e ela sofria de sérios problemas com socialização.

Ully tinha cabelos castanhos que iam pouco abaixo do ombro, olhos também castanhos e a pele parda. Só não batia em 1,70 de altura por falta de um centímetro. Tinha o ossinho do nariz um pouco saltado e a ponta meio redonda e arrebitada. Preferia bolo, se é que vocês me entendem. Desconfiada até o cerne, passou essa semana inteira captando um clima estranho pela cidade, que decidiu simplesmente encarar com ceticismo.

Ela poderia deixar o cérebro se ocupar com o diálogo insignificante com o estagiário, que eu mencionaria o nome se soubesse, mas tinham vias de pensamento suficientes correndo pela cabeça dela para voltar a atenção para a estátua, mais uma coisa para sua lista pessoal de esquisitices. Muitas pessoas comentavam pela cidade de vários eventos estranhos, lendas locais sobre hotéis assombrados nas montanhas, vultos e coisas mudando de lugar, tanto que conseguia fazer uma lista mental, mesmo que não acreditasse no teor sobrenatural que rondava tudo isso. Adicionou uma estátua de dragão não identificada no fim dos tópicos, sem registro, sem recibos, em ótimo estado e que apareceu de graça no antiquário mais sem graça do bairro. Isso fez algo remexer na cabeça dela, mas apenas ignorou e insistiu que deveria parar de pensar em dragões.

O clima perfeito e aconchegante das ruas, com casais apaixonados tomando refrescos de braços dados, esfriou para abaixo de zero assim que destrancou a porta de casa e viu o lado interior. A sala escura se fez visível, do jeito exato que tinha deixado. A escada com corrimão de madeira subindo para os quartos ao fundo, um livro a ser terminado em um aparador e nada de bom na televisão. Ully morava sozinha com só dezenove anos. Achou cedo para ter independência financeira? Bem, não seria desse jeito se não fosse pelo tal incêndio de quatorze anos atrás, que por acaso ela ainda não tinha superado.

Subiu para o quarto, evitando o último cômodo do corredor com um aperto no peito. A luz da Lua passou vagarosamente pela cortina, com a brisa percorrendo o quarto, interrompida somente pelas cobertas na cama. Se tivesse sorte, não teria problemas nessa noite.  

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