Capítulo Três

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Ninguém sabia quando o General retornaria do front.
Não que Alina houvesse perguntado. Seria patético demais, e ela tinha de deixar de ser uma criança carente de atenção. Mas durante suas lições do dia seguinte, quando há muito ele já havia deixado Os Alta, ela ouvira sussurros sobre quão subitamente ele se fora, e o quão incomum havia sido o fato de ele ter permanecido tanto tempo no Pequeno Palácio. Em geral, Kirigan permanecia apenas algumas poucas semanas para checar os iniciados Grishas e ter suas reuniões semestrais com o rei, e depois retornava para os acampamentos de guerra do Segundo Exército.
Reuniões semestrais, pensou Alina ao encarar suas anotações na aula de Fjerdano. Quer dizer que ele provavelmente não voltará antes de metade do ano ter se passado.
Sim, ela definitivamente havia escolhido a pessoa errado para se afeiçoar.
Mas não adiantava se lamentar por isso. Nem tudo estava perdido. Ela tinha um lugar no Pequeno Palácio, agora que havia evoluído e se mostrado digna de ser chamada Grisha, e podia se gabar de ter amigas de verdade. Genya e Nina permaneceriam ao seu lado, ela sabia, acontecesse o que acontecesse, e com sua socialização atual mesmo Marie e Nadia poderiam ser adicionadas à essa lista. As duas últimas eram divertidas, e embora Marie falasse demais de vez em quando, era bom poder rir e relaxar às vezes.
Então, ela ficaria bem, e seguiria em frente. Porque ela precisava, e não tinha como voltar para Keramzin agora, mesmo que pudesse_ não havia mais ninguém para ela lá.
De início, o tempo demorou para passar, e de vez em quando a menina se pegava pensando onde estaria o General do Segundo Exército, e se ele mesmo se importava em como ela estava. Alina tinha consciência que seus tutores se correspondiam com ele frequentemente, atualizando-o de seus avanços e pontos fortes e fracos em cada disciplina, assim como Botkin e Baghra, mas não se atreveu a perguntar sobre ele a nenhum deles. Se Kirigan a havia tratado daquela maneira, era porque não se importava com ela de verdade. E se esse fosse o caso, ela também não ligava para ele.
Ou pelo menos era o que ela dizia a si mesma.
Em algum momento, no entanto, as coisas se tornaram mais naturais e fluíram mais rapidamente, e os dias se tornaram semanas, e as semanas viraram meses. O tempo parou de ser notado pela menina, que começou a realmente se sentir em casa... pela primeira vez em toda sua vida.
Algumas de suas lições eram especialmente desafiadoras, especialmente as aulas de idiomas. Shu e Fjerdano não eram seu ponto forte, definitivamente, mas ao mesmo tempo era recompensador ser capaz de conjurar os verbos no passado corretamente, quando se esforçava.
Os treinos com Botkin eram os prediletos de Alina, que se via evoluindo cada vez mais proeminentemente. Mesmo ela, uma criança, sabia que se destacava nas aulas práticas, em especial no combate corpo-a-corpo. Ela era pequena e consideravelmente mais fraca, era verdade, mas também conseguia ser veloz e ágil quando queria, e assim cansava seu oponente e se desviava de seus golpes com mais habilidade do que se esperava de uma criança tão pequena.
Claro, ela recebera muitos hematomas no caminho, mas cada um deles valera a pena. Ela ainda não se igualava a Zoya, mas conseguia vencer Nina se focasse sua atenção unicamente no desafio, e não nos olhos que a encaravam fixamente durante os treinos.
E um deles era da própria Aero, definitivamente.
_ Cuidado _ sussurrou-lhe Nina um dia, quando as duas se afastavam do centro do pátio em direção ao estande de tiro. _ Se um olhar matasse, Nazyalensky já teria você enterrada.
Alina tentou não olhar para trás, na direção da Grisha em questão.
_ Eu sei. Prefiro não pensar nisso.
_ Oh, ela está apenas com ciúmes! _ exclamou Marie, um pouco alto demais. _ Primeiro você cai nas graças do General Kirigan, depois na de Botkin. Se conquistar Baghra, aposto que a cabeça dela vai explodir!
Nadia e Nina riram, mas Alina suspirou.
_ Bem, disso eu duvido. Minhas aulas com Baghra estão estagnadas. Acho que ela sequer pensa que eu sou a Conjuradora do Sol. _ murmurou para si mesma.
Nina colocou uma mão no ombro de Alina, e sorriu gentilmente.
_ Cada Grisha presente aqui já se frustrou com Baghra. Ivan incluso. _ Ela lançou um olhar ao Sangrador que observava o treino de um canto, braços cruzados e rosto carrancudo. _ Portanto, não se cobre demais. Você tem uma tendência a fazer isso, Starkov.
Era fácil falar, quando não era Nina quem tinha que salvar o mundo e destruir a Dobra.
_ Ouvi dizer que você tem um chá marcado com a rainha esta tarde. _ comentou Nadia, os olhos cheios de curiosidade. _ É verdade?
A menina deu de ombros.
_ Ela pareceu interessada em mim durante a apresentação ao rei. _ Alina ainda se lembrava do choque de todos, da admiração em seus olhos, incluindo em cada membro da família real, quando ela explodira em luz branca cintilante bem no meio da sala do trono. _ Recebi o convite de Genya ontem.
_ O que você vai vestir? _ quis saber Marie.
Alina piscou.
_ Um dos meus keftas, é claro.
_ O quê? Mas você não pode! _ exclamou Nadia, consternada.
Marie assentiu, concordando com a amiga, ao passo que Nina revirou os olhos enquanto analisava com qual das armas á sua frente treinar em seguida_ adagas ou pistolas.
_ Porquê não? _ perguntou Alina, completamente confusa. Ela tinha keftas revestidos de seda, além dos de lã apropriados para o inverno. Eles eram ainda mais requintados e perfeitos para eventos formais, além de muito agradáveis de vestir. A menina ainda não havia se habituado à suavidade do tecido sob seus dedos, e de vez em quando, quando os vestia, ainda se pegava afagando as saias de seus trajes. _ Eles são tão lindos quanto os vestidos da Tsaritsa.
_ Não importa se você os acha bonitos. Encontros com a rainha tem uma série de etiquetas que devem ser seguidas. Aquela criada Grisha não lhe disse isso? _ teimou Nadia, franzindo as sobrancelhas escuras.
Por um momento, Alina não compreendeu. Ela não se lembrava de ter nenhuma criada Grisha. Mas então viu a expressão no rosto de Nina_ cheia de desconforto_ e entendeu.
_ Você quer dizer Genya? _ perguntou.
_ É claro _ riu-se Marie. _ Por acaso existe alguma outra Grisha que seja o animalzinho de estimação dos reis?
As palavras cruéis de Marie demoraram para atingir a menina, que apenas ficou ali de pé, encarando-a de boca aberta. No entanto, quando enfim o fizeram, ela sentiu algo estranho acordar dentro de si, um calor que lambia suas veias e crescia dentro de seu peito.
Ela abriu a boca para rebater o termo grosseiro dirigido à sua amiga mais querida, ou para questionar Marie sobre o que ela havia querido dizer com aquilo_ para ser sincera, Alina estava tão furiosa que não sabia bem_ quando a voz de Botkin ecoou às suas costas.
_ Starkov, aqui! Quero ver o que aprendeu na última semana.
Ela demorou um segundo para se virar.
A expressão do tutor não dava abertura para recusas.
_ Sim, senhor.
Ela avançou até o meio do pátio, onde alguns Grishas já haviam parado seus próprios treinamentos para observá-la. A maioria sussurrava ansiosamente, antecipando a escolha de Alina para um oponente. Geralmente, ela escolhia Nina, ou então Marie ou Nadia, mas naquele momento, ela estava tão furiosa que desejava lutar contra alguém que de fato seria um desafio, e que não se seguraria contra ela.
Alina sabia bem quem era essa pessoa. E indo contra seu senso de preservação, exclamou:
_ Zoya Nazyalensky.
O choque caiu tão abruptamente sobre os presentes no pátio que sequer uma exclamação de surpresa se fez ouvir.
Os olhos de Botkin se arregalaram levemente, mas ele assentiu e desviou o olhar para onde Zoya estava. Um Corporalki e um Etherealki recuaram a fim de abrir espaço para que a menina mais velha avançasse, sua postura impecável, como sempre, e sua expressão serena e um tanto quanto prepotente.
_ Starkov e Nazyalensky, então. _ murmurou Botkin, recuando alguns passos para observar. _ Lembrem-se das regras, garotas. Sem poderes.
Ao ouvir isso, Zoya sorriu um sorrisinho malicioso. Se postou diante de Alina.
_ Oh, acredito que isso não será um problema para a Conjuradora do Sol. _ disse, a voz falsamente doce. _ Não é, Alina?
Se aquelas palavras houvessem saído da boca de qualquer outra pessoa, Alina não teria ligado. Mas dos lábios de Zoya, ela sabia reconhecer bem a provocação. Todos sabiam que ela tinha dificuldades em conjurar, e alguns ainda escarneciam dela pelas costas por isso.
Zoya obviamente era uma dessas pessoas.
O estado de espírito de Alina era tal que ela apenas se limitou a mudar a posição para uma de luta, e esperou.
E esperou.
Quando finalmente a outra menina atacou, foi tão súbito quando um relâmpago, e teria sido um golpe vitorioso com certeza... se Alina não fosse tão ágil.
Rapidamente, a menina jogou o tronco inteiro para o lado, se contorcendo de uma forma dolorosa, mas evitando o ataque de um dos punhos da oponente. Zoya não se abalou, no entanto, e jogou outro soco na direção do rosto de Alina, que se abaixou e rodou em círculo, derrapando levemente sobre os pés no gelo do chão antes de se colocar ao lado de Zoya para acertá-la com os dedos cerrados na parte mais alta da bochecha. Exclamações de surpresa ecoaram entre os Grishas, mas mesmo isso_ mesmo o fato de que ela havia sido a primeira pessoa a acertar Nazyalensky em meses_ não foi o bastante para diminuir o retumbar ensurdecedor do coração de Alina e acalmar as vozes que ecoavam em sua cabeça, todas diferentes, convergindo em uma cacofonia enfurecedora.
Animalzinho de estimação dos reis, sussurrava a voz de Marie sobre Genya.
... não é capaz de conjurar sequer um pequeno produto de sua Pequena Ciência, grunhia Baghra dentro de sua gruta.
Esse não é o comportamento esperado da Conjuradora do Sol, dizia Kirigan, os olhos cinzentos decepcionados.
O olhar de Zoya era tal que teria congelado qualquer um no lugar, de puro medo. Mas Alina ainda se sentia furiosa demais para parar, de modo que partiu para seu próprio ataque.
Lançou um soco bem na direção do abdômen da outra menina, que o interceptou rapidamente com o braço. Alina, no entanto, aproveitou a proximidade para agarrar o tecido da manga do kefta de Zoya e torcer seu braço direito entre as duas, arrancando um gemido surpreso e dolorido da menina mais velha. Depois, ela rodeou-a, colando aquele mesmo braço em suas costas, e a fez se inclinar para frente sobre sia mesma, quase em uma reverência na frente de Botkin.
Os olhos de seu instrutor brilharam.
_ Você se rende? _ sibilou Alina no ouvido de Zoya, a voz instável e dura.
_ Para você? _ respirou a outra menina. _ Nunca.
A menina mais nova assentiu, depois lançou a oponente para a frente, e observou-a perder o equilíbrio e cair de joelhos no chão úmido.
Alina recuou alguns passos e se colocou em posição novamente.
_ Santos. _ ela ouviu Nina sussurrar à sua esquerda.
Com um rugido de pura fúria e indignação, Zoya girou agachada, parecendo uma lince ou uma pantera, e se lançou na direção de Alina. Apesar de sua graça, no entanto, havia mais raiva em seu ataque do que sua costumeira estratégia fria, de modo que a outra menina foi capaz de desviar dela com rapidez. As duas pararam no meio do círculo que havia se formado no meio do pátio, um círculo de Grishas animados que agora soltavam palavras de incentivo para Alina ou exclamações aqui e ali. Ouvindo isso, Zoya pareceu se desconcentrar, os punhos tremendo em sua posição de defesa, os olhos azuis fervendo de raiva.
Mas Alina também estava com raiva. E sabia que podia vencer Zoya daquela vez. Então atacou.
Ela disparou socos atrás de socos em direção à oponente, que foi capaz de desviar e interceptar. Aquilo, contudo, estava claramente cansando-a, e a menina não estava nem perto de terminar. Mudando de tática e quebrando o ciclo com o qual Nazyalensky havia se acostumado, ela usou o cotovelo para acertar o queixo da menina mais velha, que gritou de dor ao recuar dois passos cambaleantes. Aproveitando a distração, Alina usou o pé para dar uma rasteira em Zoya, que enfim sucumbiu e caiu de costas no chão.
Alina se permitiu inclinar sobre Zoya, e com uma mão em seu ombro, sussurrar baixinho:
_ Se falar de meus poderes novamente, eu vou usar minha luz em você, mesmo que depois Botkin me expulse do Pequeno Palácio.
Claro, Botkin jamais a expulsaria, o que apenas tornava a ameaça mais plausível.
Se colocando de pé, a menina mais nova se afastou, os ouvidos sendo preenchidos pelos gritos de vitória dos Grishas ao seu redor. Nina pareceu ao seu lado, sorrindo de orelha à orelha, e a abraçou com força.
_ Pelo Santos! _ ela exclamou, rindo. _ Eu não consigo acreditar nisso!
Pelo canto de olho, ela viu Botkin batendo palmas calmas com uma expressão satisfeita, e Zoya se sentar no chão com uma cara tão perplexa quanto Alina se sentia. Um momento depois, ela se colocou de pé e saiu batendo os pés do pátio, e ninguém tentou impedí-la. Alguns outros Grishas se aproximaram e a saudaram, incluindo Nadia e Marie.
Ao avistar Marie, ela se sentiu furiosa novamente.
_ Porquê disse aquilo? _ exigiu Alina, encarando a amiga. _ Porquê disso aquilo sobre Genya?
Os olhos de Marie se arregalaram, e ela engoliu em seco, empalidecendo.
_ Eu... bem... É só o que todos pensam. _ respondeu.
_ Não eu. _ contrapôs a menina. _ Eu não penso isso. Genya é minha amiga. Nunca mais fale dela assim, para ninguém.
As vivas morreram, e as pessoas começaram a encarar.
Quando Marie não respondeu, o calor nas veias de Alina se intensificou.
_ Marie.
_ Certo! _ exclamou a outra menina. Havia algo como medo em sua expressão. _ Nunca mais vou dizer nada parecido. Eu juro!
Alina assentiu, e engoliu em seco. Aquela sensação não morria, de modo que se voltou para Botkin e disse:
_ Preciso ver Baghra.
Entendimento imediatamente preencheu os olhos do instrutor, que assentiu seriamente.
Se afastando das outras crianças, Alina disparou pelo pátio, depois pelo campo que levava à gruta. Ela viu os bosques reais pelo canto dos olhos, mas não prestou atenção aos galhos nus pelo inverno enquanto corria e corria e corria. Ela precisava chegar até Baghra, antes de explodisse. Antes que sua luz irrompesse dela como uma supernova...
Ela sequer bateu quando atingiu a porta de madeira velha. Simplesmente saiu entrando, olhando ao redor em desepero.
_ O quê significa isso? _ exclamou a velha, sentada à lareira com uma caneca de chá. _ O que você pensa...
Mas então ela viu sua expressão, e pareceu entender, assim como Botkin.
_ Precisa deixar sair. _ disse um instante depois, colocando o chá de lado e se levantando.
Alina arregalou os olhos.
_ O quê? Está louca?
Baghra estreitou os olhos com as palavras, mas sacudiu a cabeça.
_ É a única maneira. Estenda as mãos e conjure. A hora é agora. _ Ela observou a menina por longos segundos, nos quais a respiração de Alina se convertera em arfares entrecortados. _ Seu gatilho era esse. A emoção. Raiva. Deve usar isso agora, se quiser dominar sua luz.
Umedecendo os lábios, ela gaguejou:
_ Mas... você... e se eu...
Um sorriso imperioso brincou nos lábios da mulher.
_ Acha mesmo que é capaz de me ferir, criança?
Alina não achava, mas ainda tinha medo. Não queria ferir ninguém. Mas sentia naquele momento que seria bem capaz disso, se não fizesse direito. O calor em seu peito havia se multiplicado por dois, e agora ardia como uma chama viva. Seus membros pareciam quentes e moles ao mesmo tempo, e algo fazia suas mãos pinicarem, como se precisasse...
Ela estendeu as mãos à sua frente, os dedos esticados. E estreitando os olhos, deixou sair.
A raiva, o calor, a chama. Simplesmente deixou sair.
E uma esfera enorme de pura luz branca surgiu, enchendo a pequena gruta abafada de Baghra em um brilho tão intenso que ambas precisaram desviar o olhar para proteger os olhos.
Admiração encheu Alina, e orgulho. Ela havia feito aquilo, havia conseguido! Finalmente, ela fora capaz de conjurar, e de chamar sua luz sozinha. Sem a ajuda do General, de um amplificador. Baghra se aproximou ao seu lado, a expressão diferente de qualquer outra que ela já havia visto.
_ E agora o verdadeiro trabalho começa.



_ Deve estar exultante! _ exclamou Genya enquanto trançava seus cabelos em frente à penteadeira do quarto. _ Em um só dia, derrotou Zoya em uma luta e aprendeu a conjurar por conta própria. Parebéns, Alina.
A menina tentou sorrir, mas sua tentativa deve ter sido tão patética que Genya percebeu que algo estava errado.
_ Qual é o porblema?
Sua vitória sobre uma menina muito mais velha e experiente que ela e a lição com Baghra naquele dia_ que verdadeiramente havia avançado_ devia ter erradicado a raiva e desconforto dentro de Alina. No entanto, esse não era o caso, e as palavras de Marie ainda a assombravam enquanto ela se aprontava para o chá com a rainha.
_ Genya, porquê você veste as cores dos criados? _ Finalmente Alina não conseguiu se conter, e disparou a pergunta.
Os habilidosos dedos da amiga pararam de trabalhar na longa e intricada trança em seus cabelos, e imediatamente ela se arrependeu de perguntar. Se virou para encarar a Artesã, cuja expressão era pálida e congelada.
_ Não precisa responder. Esqueça isso. Não importa. _ assegurou à amiga.
Genya respirou fundo, abaixando os olhos, e atando uma fita marfim ao final da trança de Alina, sussurrou:
_ Exceto que importa, sim.
Ela se afastou, indo em direção à seu kit, e começou a remexer nos objetos meticulosamente organizados.
_ Eu tinha quatro anos quando o General Kirigan me deu de presente para a rainha.
Alina ergueu as sobrancelhas.
_ De... presente?
_ Sim.
_ Mas...
_ Uma Grisha Artesã é muito rara de surgir, e muito valiosa. Para a nobreza, pelo menos, que se preocupa mais com a aparência do que com qualquer outra coisa. _ Ainda de costas, ela sacudiu a cabeça, os cachos ruivos saltando como molas. _ Eu cuido da rainha. Faço-a parecer mais linda e mais jovem. Em troca, eu vivo no Grande Palácio, tenho aulas com tutores especiais e recebo privilégios. Isso... gera desconforto entre os outros Grishas.
_ Mas você não gosta de lá. _ Percebeu Alina. _ Porquê?
Genya suspirou profundamente, e se virou, uma rosa seca em suas mãos.
_ O rei... me olha de um jeito estranho. _ admitiu, tocando as bochechas da outra menina. Pelo espelho, Alina viu sua pele ali se colorir de um suave tom de cor-de-rosa. _ Desde que eu fiz dez anos, ele vem fazendo isso. E ás vezes a rainha se irrita.
_ E se você pedisse para o General te realocar ao Pequeno Palácio?
A amiga arregalou os olhos e replicou:
_ Oh, não, eu nunca poderia...
_ Porquê não?
_ Eu tenho uma missão no Grande Palácio. Uma que o General em pessoa me incumbiu. Não posso desapontá-lo.
Alina compreendia a sensação de Genya de deixar o General Kirigan orgulhoso, de não decepcioná-lo. Afinal, ela própria o havia desapontado, e fora uma experiência terrível. Apesar disso, no entanto, ele era o protetor dos Grisha. Se soubesse que Genya se sentia desconfortável no Grande Palácio, se soubesse que ela preferia ficar com os outros Grishas, e usar as cores que a pertenciam...
_ Posso falar com ela. _ ofereceu à Artesã. Ela não queria realmente falar com Kirigan, nem lhe pedir nada, mas por Genya, ela o faria. _ Tenho certeza de que se eu lhe pedir, se lhe disser que preciso da sua companhia...
_ Não, por favor. _ pediu-lhe Genya. Seus olhos eram suplicantes. _ Não faça isso, Alina. Eu quero provar que consigo fazer isso. Preciso fazer minha parte. Como Grisha.
A menina franziu os lábios, dividida.
Ali, no Pequeno Palácio, todos pareciam ter essa necessidade_ a de se provar. Fosse porque desejavam se encaixar e ser considerados dignos de suas habilidades, ou dignos de um dia serem parte do Segundo Exército. Para Alina, aquela necessidade se manifestava de um modo um pouco diferente_ o de ser forte o bastante para destruir a Dobra. Mas para Genya, era aquilo: permanecer na corte, resistindo aos olhares estranhos do rei, e cumprir sua missão.
Ela precisava respeitar isso.
_ Tudo bem. _ ela disse. _ Não vou dizer nada. Mas se mudar de ideia...
_ Você será a primeira a saber. _ prometeu-lhe a amiga.
Alina assentiu, e Genya sorriu.
Cinco minutos depois, Alina estava sendo escoltada por Ivan na direção do Grande Palácio, Genya logo atrás. O vestido que havia sido cuidadosamente selecionado para seu chá com a rainha consistia em uma aberração de seda cor-de-rosa com babados e mangas bufantes, e um par de sapatilhas de veludo branco. Por cima, ela usava uma capa de um tecido pesado e desconfortável, adequado para o clima frio do inverno.
_ Pare de se contorcer. _ repreendeu Ivan a seu lado.
Ela fez uma careta para o Sangrador.
_ Essa capa pinica. _ reclamou.
_ Você é uma dama. Deveria se portar como uma.
Alina revirou os olhos.
_ Você diz isso porque pode usar seu kefta. Se fosse forçado a usar um vestido como esse, certamente não agiria como uma dama.
Seu guarda pessoal a encarou com frieza.
_ Eu pareço uma dama para você?
_ E eu? _ retrucou a menina. _ Pareço?
Para isso ele não tinha resposta, de modo que os três continuaram atravessando o grande campo que separava os palácios.
Como da primeira vez em que avistara o Grande Palácio, em sua apresentação ao rei, Alina torceu o nariz. Não era que o edifício fosse feio_ a arquitetura requintada e a matéria-prima exorbitante tornava isso impossível _, mas é que havia tanto dourado! Tetos abobadados e águia e mais águias Lantsov decoravam o lado externo e o interno, e os corredores pareciam não acabar nunca, arranjos de flores que faziam a menina querer espirrar em cada canto. Não era como o Pequeno Palácio, com o qual ela havia se habituado e criado laços. Não havia nenhuma praticidade nem conforto familiar ali.
Ela não sabia como Genya suportava.
Depois do que parecera horas e mais horas andando pelos incontáveis andares do Grande Palácio, finalmente eles chegaram a uma saleta primorosamente decorada de rosa e ocre, onde estava a rainha. A Tsaritsa Tatiana se sentava à mesa cheia de delícias e diversos tipos de chá, vestida em um traje de cetim azul-claro como o céu de verão. Seus cabelos haviam sido elegantemente enrolados no alto, dourados e sedosos, e embora por muitos ela pudesse ser considera bela, para Alina ela mais parecia uma boneca de porcelana impecável e um tanto quanto assustadora.
Haviam dois meninos loiros na sala, vestidos em trajes oficiais da família real_ os príncipes, a menina se lembrou_ que fizeram mesuras educadas assim que Alina, Ivan e Genya surgiram na entrada.
_ Oh, ali está ela! _ exclamou a rainha, os olhos azuis brilhando ao encararem a menina. _ A Conjuradora do Sol!
Foi a vez dos três Grishas se curvarem para a soberana, que não se incomodou em se erguer da mesa de chá, e enquanto Ivan ia se postar de pé em um canto do cômodo, Genya prontamente parou ao lado da rainha. Tatiana sorriu sem olhar para ela, e estendeu uma mão para acariciar seus cachos ruivos, como se ela fosse um cachorrinho.
A ação irritou profundamente Alina.
_ Você fez um esplêndido trabalho nela, Genya, querida. _ elogiou a soberana.
Alina se forçou _muito mesmo_ a sorrir.
_ Obrigada pelo convite, moya Tsaritsa.
_ Oh, por favor, não me agradeça. Eu precisava conhecê-la depois do espetáculo que você mostrou quando chegou aqui. _ Ela acenou para que a menina se aproximasse e se sentasse, e assim Alina fez. Uma criada otkazat'sya se aproximou e despejou uma xícara de chá para Alina, que aceitou e deu uma bebericada. _ Eu a teria convidado antes, mas francamente, andei tão ocupada...
A menina assentiu como se compreendesse, mas na verdade não compreendia. A mulher não parecia do tipo que se ocupava dos deveres do estado, e além disso, o que mais havia para uma rainha fazer?
_ Oh, oh! _ exclamou Tatiana de repente. _ Deixe-me apresentá-la oficialmente aos meus filhos, os príncipes. Vasily, Nikolai!
Os príncipes se aproximaram, e Alina se chocou ao perceber que embora tivessem características em comum_ olho azuis e cabelos dourados como os da Tsaritsa_, não podiam ser mais diferentes entre si. Um tinha um olhar divertido e leve, enquanto o outro possuía um rosto que lembrava-a excessivamente do rei.
_ É um prazer, meus príncipes. _ Ela não se dirigiu a eles especificamente pois não fazia ideia de quem era o Tsarevich e quem era Nikolai.
_ Você é a nova Grisha. _ disse um dos príncipes, o que se parecia mais com o rei. Seus olhos eram esquisitos ao encararem a menina, como se a estivessem analisando e julgando de digna de nota. Olhou-a decima a baixo. _ A que conjura luz.
_ Acredito que o título seja "Conjuradora do Sol", irmão. _ comentou o outro, que aos olhos de Alina parecia mais amigável.
O primeiro menino bufou.
_ Ninguém lhe perguntou, Nikolai.
E fácil assim, Alina detestou Vasily.
O segundo príncipe, Nikolai, não pareceu se abater, e piscou para ela enquanto se sentava à mesa e se ocupava de capturar um biscoito de avelã doce. O Tsarevich se acomodou ao lado de Tatiana, e assim todos deram início ao chá em silêncio.
Oh, como Alina desejava que o silêncio houvesse permanecido.
A tortura começou com o tagarelar incessante da rainha sobre a aparência de Alina, sobre quão ela parecia mais agradável de olhar do que há meses atrás, quando havia chegado ao Pequeno Palácio e sido apresentada ao Tsar. E embora ela tivesse elogiado a cor em suas bochechas e seu saudável ganho de peso, não deixou de notar exatamente o quanto a menina se parecera com uma órfã no primeiro dia.
_ Bracinhos e pernas tão esquálidos, pobrezinha. _ pontuou Tatiana, distraída com o bordado de seu luxuosos vestido. _ E um cabelo tão sem vida e sem brilho.
Alina trincou os dentes, e tentou se manter tão calma quanto durante uma das meditações de Botkin. Do canto da saleta, ela notou de soslaio um brilho estranho nos olhos de Ivan, que revelavam um tipo perverso de diversão. Da mesa, Genya lhe lançou uma expressão suplicante, como se implorasse para que a menina não cegasse a rainha com sua luz.
Então, tanto por orgulho quanto pela amiga, ela se conteve, e abaixou os olhos para o bolo de chocolate em seu prato.
Foi uma hora terrivelmente longa, aquela.
Mas o pior ainda estava por vir, pois quando Tatiana se cansou de enumerar os muitos defeitos da aparência da menina, o Tsarevich insistiu em ver a luz de Alina outra vez.
Quando ela hesitou e estava prestes a recusar, a rainha franziu o cenho livre de rugas e replicou:
_ O príncipe-herdeiro fez um pedido, Srta. Starkov.
Em seu tom estava implícito de que não se tratava de um pedido.
Ela teria olhado na direção de Ivan por auxílio, mas duvidava que ele pudesse ajudá-la. Afinal, aquela era a rainha. Nem mesmo Kirigan parecia capaz de negar coisas aos soberanos. Então a menina respirou fundo em frustração, se levantou da cadeira e no meio da sala conjurou uma esfera de pura luz.
Tatiana encarou embasbacada o brilho cintilante, sorrindo, e ao seu lado Vasily sorriu, mas foi um sorriso diferente. Sua expressão não estava focada na luz de Alina, mas em sua expressão claramente desconfortável, e a menina teve a nítida e desagradável impressão de que ao contrário da mãe, ele não se divertia com a demonstração_ e sim com o incômodo dela.
Aquilo a irritou profundamente, e a luz queimou mais quente e brilhante. Ela a manteve firmemente controlada, no entanto.
Era estúpido, a menina sabia. Mesmo ela _ uma órfã que acabara de se descobrir Grisha, uma menina de oito anos_ sabia muito bem que a Pequeno Ciência não era um tipo fútil de divertimento. Era poder, puro e simples, e importante, também. Os Grishas se orgulhavam de tê-la, e não a empunhavam levianamente. E ainda assim, lá estava ela, fazendo o herdeiro do trono sorrir maldosamente e a rainha bater palmas.
Ela tinha certeza de que o General Kirigan odiaria aquilo tanto quanto ela.
De repente, Ivan deu um passo à frente, e se curvando, disse:
_ Peço perdão, Vossa Majestade, mas a Conjuradora do Sol tem suas lições agora.
Alina recuou a luz para dentro de si, e o olhou, surpresa. Ela já havia terminado com todas as suas aulas naquele dia.
As finas sobrancelhas da Tsaritsa se uniram em desagrado.
_ Agora?
O Sangrador apenas assentiu. Depois de um segundo, acrescentou:
_ O rei espera que ela seja capaz de avançar em seus treinos, e assim controlar suas habilidades melhor.
A rainha suspirou, recostando-se na cadeira ornamentada.
_ Oh, bem. _ Fez uma pausa. _ Se é uma exigência do rei...
Acenou distraidamente com a mão, e sem sequer se despedir de Alina, os dispensou.
Ivan acenou para que a menina seguisse em direção à porta, e ela o fez, depois de lançar um olhar de adeus à Genya.
_ Porquê disse aquilo? _ perguntou Alina ao guarda quando já estavam no campo que separava os palácios, longes o bastante de ouvidos curiosos.
Ele sequer a olhou quando respondeu.
_ Ela a teria mantido ali por horas.
Sim, disso ela sabia.
Quando a menina continuou encarando-o em busca de um esclarecimento, o Sangrador suspirou e admitiu, à contragosto:
_ Grishas são soldados, não fantoches para a diversão de nobres. Só a visão de um de nós entretendo a rainha e seus filhos já me deu náuseas.
Ele ergueu uma mão para indicar que a menina avançasse pelos degraus do Pequeno Palácio, mas Alina notou algo estranho no dorso de sua mão direita.
_ O que é isso? _ Ela fez menção de tocar.
Rapidamente, o Sangrador recolheu a mão.
_ É um amplificador. _ respondeu Ivan, a expressão novamente neutra.
Alina inclinou a cabeça para o lado.
_ Como o Darkling?
_ Não exatamente. _ replicou ele. _ Esta é a garra de urso; um amplificador animal. Um Grisha pode matar um amplificador e usá-lo em si mesmo, desse modo, aumentando suas habilidades. Somente os Grishas mais próximos do General recebem esta honra. _ Havia um toque de orgulho na voz de Ivan. _ Eles também alongam nossa vida.
_ Ah! Então você é mais velho do que parece?
Seu guarda pessoal a encarou friamente, claramente sem achar graça.
_ E isso seria de sua conta como, exatamente? _ questionou ele.
E então Alina fez algo que apenas meses de convivência lhe permitiam: ela zombou de Ivan.
_ Bem, na verdade não é, mas certamente é a de Fedyor. Ele pode conseguir alguém bem melhor do que um velho decrépito, sabe?
Por um momento, os olhos do Sangrador de arregalaram em choque_ ele claramente não esperava por isso. Mas então algo brilhou ali, algo raro e diferente... diversão, talvez?
Ainda assim, ele apontou as portas do Pequeno Palácio.
_ Vá se lavar para o jantar. Agora.
E Alina foi, rindo, a cabeça jogada para trás em prazer enquanto sua gargalhada ecoava nos corredores do edifício.

The Tragedy of Two HeartsOnde histórias criam vida. Descubra agora