01. A noite

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(GAVIN)

Já fazem seis meses que estou no Rio.

E em algum lugar da minha consciência, sei que disparos de aviso e reclamações cada vez mais insistentes estão fazendo muito barulho em algum lugar. Mas aqui, dirigindo meu 4x4 azul a toda velocidade pelas avenidas que rodeiam a praia (poluída) de Botafogo, com a adoradíssima companhia do meu melhor amigo, consigo abaixar o tom dessas bravatas. Estamos felizes, sadios, prosperando cada vez mais e cada dia mais decididos a não voltarmos para os Estados Unidos.

Donovan é três anos mais velho que eu, tem a pele escura e o cabelo crespo cortado baixo. Ele está vestindo uma calça e camisa social; um casaco repousa sob seus ombros. Eu o noto olhando para a paisagem lá fora com aquele indisfarçável brilho no olhar, o mesmo desde que aterrissou no Galeão e viu que estava mesmo em terras brasileiras. Eu cheguei uma semana depois, e fui recebido por um incomumente empolgado Donovan.

Viemos a negócios e nada podia estar melhor: meu curso de inglês para nativos estava indo de vento em popa, os investimentos que fiz na empresa deram mais do que certo, e meu melhor amigo e o segundo homem na liderança da Urus estava plenamente feliz. E era muito bom ver alguém que eu já vira afundado na depressão sorrindo daquele jeito.

— Vamos parar um pouco? — pergunta Donovan. Ele começou a falar em português mesmo quando estamos sozinhos, e eu já me acostumei com isso. Então respondo também em português:

— Aqui? Você sabe que essa praia é imprópria para banho, não é? E já são onze da noite, precisamos ir pra casa. Estamos o dia inteiro na rua e eu preciso mesmo comer alguma coisa.

— A gente para num quiosque e belisca alguma coisa — responde ele, olhando mais uma vez para o mar sujo que, na cabeça dele, parece lindo e convidativo. E sim, ele usou a palavra "beliscar" ao invés de "degustar". Ele definitivamente "pegou a manha" brasileira e já até fala como nativo.

— Sei não...

— Para de ser chato, eu nem vou mergulhar. Só quero ver o mar.

— O mar carregado de lixo e excrementos?

— A palavra que você quer usar é "cocô" — ele ri. — Também temos "caca", "bosta", "caquinha", "mer..."...

— Eu sei disso tudo — corto, exasperado. — Eu tenho que saber, sou eu que administro um curso para brasileiros falarem como nativos americanos.

— Mas você poderia tentar falar como um nativo brasileiro também, ué.

Sim, ele disse "ué". E eu adoro essa... Palavra. Quer dizer nada e tudo ao mesmo tempo, duas letrinhas que expressam perfeitamente o sentimento do locutor. Eu definitivamente amo essa língua! Não mais que o Donovan, claro.

— Eu falo como nativo brasileiro... — murmuro.

— Um pouquinho, só — implica ele. Então volta a me implorar: — Dez minutos é tudo o que eu te peço.

Vencido, suspiro e murmuro:

— Okay, são apenas dez minutos... E vou cronometrar — faço uma breve pirraça, mas ele sabe que é pura irritação infantil e não me dá crédito. Ponto para ele.

Reduzo a velocidade e procuro um lugar onde eu possa estacionar. Alguns ônibus e carros ainda passam na pista, mas bem menos do que a agitada e turbulenta movimentação diária do trânsito em horário comercial. É uma quinta feira relativamente quente, mas aqui perto da praia está bem mais fresco. Na verdade, assim que desligo o carro e saio para o calçadão, sinto um vento frio gelando minha espinha. Franzo as sombrancelhas e fecho os últimos botões da minha camisa salmão. Donovan fecha a porta do carro e me espera ansioso ligar o alarme, que dispara um sutil aviso sonoro antes de nos encaminharmos para um enorme bloco de pedras. Reparo que ele deixou o casaco no carro, mas não digo nada.

Ainda Não AcabouOnde histórias criam vida. Descubra agora