one. você se culpa?

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Dia 70, 84 dias depois do incidente

– Bem senhor Minyard, como foi a sua semana? Ouvi falar que o time está voltando aos jogos, isso deve ser legal né?
Olho a cara do terapeuta destacado para "tratar" de nós sem grande vontade de aturar mais uma das suas consultas, cruzo os braços e o encaro sem expressão até fazer com que ele desista de obter alguma resposta vinda de mim.
– Certo, continua sem querer me responder, entendo.
Há mais uma pausa, uma de muitas nessa consulta.
– Bem devia ter acreditado quando a Doutora Dobson disse que você não iria falar muito. – ele ri soprado e me olha com aquele estúpido sorriso.
odeio-o
– O que acha de um chá? Vou considerar seu silêncio um sim, Menina Jones poderia trazer um chá? Muito obrigado. – ele sorri para a mulher de cabelos castanhos que me dá um sorriso antes de sair do jardim pra ir buscar o chá.
– Como é que tem lidado com... bem... com aquilo que viu?
– Bem. – respondo e olho as minhas unhas em busca de alguma sujidade, que já não está lá.– Tenho lidado bem.
– Negação então... – ele sussurra e me olha com os seus olhos verdes e evasivos.
Sinto me desconfortável, penso que ele consegue ler o que realmente sinto e isso me faz sentir nu, vulnerável aos olhos de um estranho. E odeio-o imenso por isso.
Ficamos assim um bocado, quietos, num jogo de quem vai desviar o olhar primeiro, até a enfermeira de cabelos castanhos de mais cedo voltar com o raio do chá. Ele sorri, ela sorri, ela sai, ele pega a xícara, ele bebe, ele volta a me olhar.
– Certo Andrew, você têm sido o membro das foxes mais difícil de fazer falar, já passaram 84 dias desde o pequeno incidente na quadra e o senhor continua a recusar-se a colaborar. Quero mesmo ajudá-lo mas preciso da sua colaboração. Portanto... Vou lhe fazer a pergunta mais uma vez... Você se culpa?

Ah sim... lá está ela, a pergunta pela qual venho esperando desde o início desta estúpida perda de tempo.

"Você se culpa?" era a pergunta que aquele médico idiota sempre fazia, por mais que recusasse responder.
Os pássaros cantam ao longe, nenhum de nós diz nada enquanto a brisa fresca faz com que alguns cabelos loiros caiam para os meus olhos.
Não respondo, não vou responder, não quero responder, isso não é algo que ele tenha de saber. Não é hoje e nunca será que vou falar sobre aquilo, sobre o 'pequeno incidente' , como eles gostam de o chamar.
"Então Andrew... Você se culpa?"
...
A verdade é, quem não se culparia?
Sei que todos nós nos sentimos mal quando entramos no estádio e sentimos o cheiro forte da lixívia, um cheiro que nas últimas semanas se tornou familiar até de mais, sei que nos culpamos ao ver o cabide vazio, as raquetes intocadas no seu lugar, sei que ninguém quer mexer nas suas roupas por causa do seu TOC.
E sei que conseguir acordar é talvez a maior culpa. Forçar o ar pra dentro e apagar a dor, der por onde der.

Olhar o estádio branco e laranja e tentar não lembrar a cor vermelha, já quase acastanhada, manchando o chão polido da quadra que você ama, começar um treino sem a sua rapidez e agilidade em campo, ver Kevin hesitante para fazer seus treinos noturnos, e o treinador tenso sempre que quase te chama.
Não, ainda não nos habituámos a não ter você falando sobre táticas idiotas e sobre o quão nos devíamos esforçar mais, apesar de já terem passado 84 dias, apesar de já estarmos á 70 dias tentando te ultrapassar, apesar de tudo. O vazio é sempre maior e maior.

– É completamente normal nesses casos você se sentir culpado apenas por estar aqui sabe...
E se tivéssemos chegado mais cedo?
–...Ninguém podia prever que aquilo iria acontecer...
E se Kevin tivesse ido com ele?
–...Nenhum de vocês sabia...
E se tivéssemos perguntado sobre as mensagens que ele sempre recebia á mesma hora?
–... Não tinham como adivinhar.

Estou de volta ao estádio de volta ao seu lado, de volta ao lado de um rosto desfigurado que me julga todas as noites, que olha meus passos e pergunta 'porque não vieram comigo?', de volta aos 'e se' que me mantiveram noites acordado junto com a dor e o pânico. De volta a ver as caras enjoadas e chocadas quando abrimos a quadra e o cheiro a podre nos tocou.
De volta a noites estreladas passadas num telhado com vento indesejado, de volta a um novo companheiro de quarto que faria de tudo por minha atenção, de volta a uma pequena chave na sua mão.
De volta, de volta, de volta, até não conseguir parar e ter de me levantar, de correr pra longe do homem de olhos verdes, do jardim com os pássaros, da mulher de cabelos castanhos. De deixar o estúpido carro, porque até isso tem um rastro seu na minha vida, de correr até tudo ficar em branco e não conseguir pensar em mais nada.
E por fim, de gritar até a garganta fazer sangue e doer, de vomitar algo que não tinha no meu estômago, e de me sentar quieto ali, á espera que apareçam os abutres e me levem para longe desse pesadelo que é a vida sem você.

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⏰ Última atualização: Apr 18, 2022 ⏰

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