04 - Ele faria o mesmo.

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     A-Yuan dormia profundamente na cama macia de Lan XiChen. O homem trabalhava em manuscritos sentado à mesa, vez ou outra lançava olhares para o pequeno adormecido mas rapidamente voltava sua atenção aos papéis. Ainda não eram nove horas, mas Yuan parecia muito cansado durante todo o decorrer daquele dia. Ele parecia muito pensativo e desanimado, mas Lan XiChen não conseguiu encontrar um motivo então concluiu que talvez fosse apenas um dia ruim. Lan WangJi não saia de sua reclusão a meses. Depois da última vez, A-Yuan mesmo envergonhado não se escondeu mais entre as vestes de Lan XiChen. Assim, o homem viu que tudo o que Lan WangJi dissesse seria seguido pelo garoto sem questionamentos e com muita devoção. A-Yuan era de fato muito centrado, tudo o que aprendeu não precisou ser dito mais de uma vez. Lan XiChen o admirava mas ainda se preocupava, afinal ele era uma criança e normalmente crianças dessa idade não davam muita bola para o que as pessoas mais velhas diziam. Elas tinham uma necessidade de buscar alegria e risadas, mesmo que fizessem travessuras e fossem repreendidas. A-Yuan não.
     Ao direcionar seu olhar para o menino novamente, Lan XiChen o viu se sentar na cama, suas pequenas mãos esfregando as pálpebras vermelhas que mal podiam se manter abertas. Seu olhar perdido vagou pelo quarto, encontrando Lan XiChen que como sempre lhe sorria gentilmente. Suas pernas miúdas rapidamente chutaram os lençóis para longe, e correram até o homem enquanto seus lábios tremiam. Os pequenos olhos sonolentos estavam marejados por lágrimas cristalinas. Lan XiChen o acolheu em seu colo e logo se levantou, deixando os manuscritos para outra hora.

     — O que houve, A-Yuan? — Perguntou passando os dedos pelos cabelos soltos da criança. — Teve sonhos ruins?

     — Huan-gege, estou com sono. — Disse, antes de afundar o rosto no ombro do outro.

     — Você pode dormir. Estou aqui ao seu lado.

      — A-Yuan não quer ficar sozinho, Huan-gege. — Agarrou as pequenas mãos fortemente nos tecidos alvos. Lan XiChen suspirou, antes de balança-lo em seus braços por todo o quarto. Lan Qiren provavelmente reprovaria suas ações demasiadamente afetuosas. Sabia que seu tio nem mesmo aprovava que o menino dormisse junto a ele, pois haviam outros quartos e seria mais confortável tanto para ele, quanto para A-Yuan. Mas Lan XiChen ainda não queria deixá-lo, pois sabia que se Lan WangJi estivesse ali, nem ao menos cogitaria. Yuan ainda tinha sonhos confusos e constantemente acordava a noite.

     Certo dia folheando livros na biblioteca, Lan XiChen se distraiu com o horário. No meio da noite, o choro alto foi ouvido em todo os Recantos da Nuvem. Lan XiChen sentiu seu peito apertar, e rapidamente se livrou dos papéis para sair dali e caminhar em direção aos resmungos confusos. Mas antes que pudesse chegar, ouviu-os diminuírem drasticamente. Dentro se seu quarto, Lan WangJi abraçava o menino contra o peito enquanto seus olhos fechados demonstravam todo o alívio que sentiu ao vê-lo. Lan XiChen recebeu um olhar questionador do irmão.

     — Não percebi que já era tão tarde. — Explicou. Lan WangJi lhe direcionou um aceno com a cabeça.

     — Você pode voltar se quiser. — Disse. Seus braços firmes em volta do pequeno corpo que tremia não davam sinais ou estimativa de quando iriam soltá-lo, então Lan XiChen apenas concordou com ele antes de deixar o quarto.

     Lan Zhan ainda sentia as batidas descompassadas de seu coração maltratarem seu peito, mesmo que sua expressão fosse serena. Parado ao lado da cama com o menino abraçado fortemente a si, voltou a se sentar com ele. Os resmungos chorosos de A-Yuan ficavam ainda mais confusos pelo sono e pelo susto. Seus lábios trêmulos bulbuciavam sonolentamente palavras erradas, mas ele não erraria as seguintes.

     — Quero ver A-Xian. — Disse, voltando a chorar. — A-Xian me colocou na árvore. Ele disse que ia me buscar. Ele não voltou. — As pequenas mãos se agarram nos robes brancos bordados em azul. — WangJi-gege, me leve para ver Xian. — Repetia. Lan Wangji sentiu um suspiro preso em seu peito que não queria sair. Ele podia não dizer a ninguém, ou não demonstrar sequer um resquício da dor que sentia. Mas sozinho, degustou uma garrafa de Sorriso do Imperador e se lembrou do sorriso que lhe foi roubado. Sozinho, podia remoer seus pensamentos e dizer a si mesmo que ele estar ali ou não, não faria a menor diferença. Mas então, naquele momento, pensou no quão injusto seria deixar aquele pequeno ser sentir sozinho toda a dor de perder uma luz que se apagou gradualmente até não restar nada. Seria justo deixá-lo sem ninguém para compreendê-lo? Ambos estavam no escuro...

     — A-Yuan. — Chamou sem sequer erguer a voz. Ouvindo-o, a mente de A-Yuan rapidamente desacelerou. Suas pequenas mãos ainda tremiam e seu coração doía de saudades de seu Xian-gege. Xian-gege o protegia de monstros e de pessoas ruins. Plantava comida, dava para a vovó e para a tia A-Qing. Xian-gege era amigo do tio Ning, e tocava flauta para que ele fosse forte. Protegia ele quando as pessoas falavam coisas ruins sobre o tio Ning. Xian-gege protegia todo mundo, e sem ele A-Yuan se viu sem abrigo, debaixo de um temporal. Ele tinha medo, queria Wuxian para olha-lo a noite e dizer "A-Yuan, me deixe dormir agora. Você está sendo chato e barulhento". E então, ele o acolheria em seus braços e enrolaria as pontas dos fios lisinhos de A-Yuan até que ele dormisse e acordasse no outro dia com batatas quentinhas para comer. Xian-gege o protegeu quando sua mamãe e papai sumiram. Mas agora ele também havia sumido. Quem o protegeria, então? — Se acalme, por favor? — A voz solene de Lan WangJi soou novamente. A-Yuan deitou sua cabeça sobre seus ombros, mas Lan Zhan o ergueu novamente e o apoiou para que olhasse em seus olhos. — Wei Ying não está aqui. Eu estou. — Secou com cuidado as lágrimas que desciam dos olhos inchados do menino. — Não espero que goste, mas que entenda. — Passou seus dedos esguios pela testa suada de A-Yuan tirando os cabelos grudados ali, jogando-os para trás. Lan Zhan estava tentando buscar palavras que fossem compreendidas pelo menino, mas era muito difícil se comunicar com uma criança. Lan XiChen era melhor nisso. — Você terá tempo e liberdade para se sentir triste. E eu respeitarei seus sentimentos. — Analisava as feições do pequeno rosto, e enquanto não encontrava sinais de confusão ou dúvida, prosseguia. — Não vou pedir para que se alegre. Demonstre o que sente. Mas peço que busque a compreensão.

     — Por que Xian-gege, tia Qing, Ning e vovó foram embora? — A-Yuan perguntou. — Por que eles não vieram comigo?

     — Escolhas não foram dadas a eles. — Lan WangJi sentiu sua língua amargar. A-Yuan por conta da febre certamente não se lembrava do que aconteceu depois que Wei Wuxian o colocou na árvore. — Não havia nada que pudessem fazer.

     — Hum... — A-Yuan suspirou. — Xian-gege tirava os monstros. Tirava pessoas ruins.

     — Eu tirarei. — HanGuang-Jun não hesitou. — Nenhum monstro ou pessoa ruim tocará você. — Era uma promessa. Vendo o menino novamente encostar a cabeça em seu ombro, fechou seus fortes braços ao redor dele com cuidado. Somente o pensamento de perder A-Yuan lhe arrepiava. Wei Wuxian morreria por ele. Lan WangJi faria o mesmo.

     — WangJi-gege, você vai embora de novo? — Yuan perguntou babando em sua clavícula.

     — Estou por perto. — Ele respondeu.

     — Quando voltar, você não vai de novo, não é?

     — Não posso afirmar. — Disse com sinceridade. — Durma.

     Com as mãos ainda firmes às vestes de Lan WangJi, A-Yuan adormeceu. Lan WangJi já podia ir. Ele podia ir, e A-Yuan provavelmente só acordaria no dia seguinte. Podia ir e ele ficaria bem. Sim, ele ficaria bem... HanGuang-Jun tentava convencer a si mesmo disso. Deitou-o sobre os lençóis de Lan XiChen, ergueu-se majestosamente em seguida. Porém não deixou o quarto, muito menos moveu-se um passo para longe da cama. Encarando a face vermelha do menino, hesitava em deixá-lo novamente. Sabia que no dia seguinte os olhinhos inchados procurariam por ele no quarto e não encontrariam. Sabia que no dia seguinte ele enfrentaria novamente olhares curiosos e se constrangeria com eles, mas não se esconderia, assim como seu WangJi-gege lhe instruiu a fazer. No dia seguinte ele olharia as crianças brincarem parado ao lado de Lan XiChen e não as seguiria pois não sabia o que devia fazer. Durante mais um longo período, A-Yuan se sentiria descolado e desejaria voltar para a sua família mas isso quebrava o coração de Lan WangJi pois agora ele e Lan XiChen eram a sua única família. Quando estava ao lado de Lan WangJi sua postura mudava, seu sorriso era outro. Era o mesmo sorriso que viu naquele rosto no primeiro contato que teve com o menino em Yiling, enquanto ele e Wei Wuxian faziam compras para levar aos moradores da colina sepultura. Aquele A-Yuan brincava e corria livremente, a alegria reinava em seu coração e isso transparecia em seu sorriso prateado. Aquele A-Yuan era diferente, ele não se importava com olhares ou em parecer apresentável. Aquele menino abraçou sua perna, se sentou em seu colo e lhe deu sorrisos brilhantes no primeiro dia em que o conheceu. A-Yuan havia mudado e seu coração estava azul, mas quando Lan Zhan estava por perto, o vermelho o tomava por inteiro novamente, porque seu WangJi-gege lhe lembrava Wuxian. Quando ele não tinha Lan WangJi ali, ele não tinha no que ou em quem apoiar suas lembranças mais felizes ao lado de Wei Ying. A-Yuan havia mudado, mas havia algo comum entre aquele alegre A-Yuan e o que estava deitado a sua frente: ambos não queriam deixá-lo ir.

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