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"Em todas as sociedades há um frigorífico latente. Seja de fato escondido ou aberto a todos.O ser humano não cessa sua infindável vontade de assumir propriedades divinas, escolhendoquem vive e quem morre. "  

(Lua Pinkhasovna)


Essa história começou muitas semanas antes, talvez tenha sido numa das manhãsensolaradas de fevereiro, quando ia para o trabalho sofrendo dentro da calça e da camisadebaixo do sol tórrido de 40°C do Rio de Janeiro, quando, na verdade, gostaria mesmo era deestar usando bermuda e chinelo, na beira de uma praia contemplando o nascer do sol. Massabia que precisaria passar por tudo aquilo, pois sonhava em me mudar e quem sabe começara viajar mais e aproveitar a família, então levantei o pescoço certeiro de que o esforço seriarecompensado um dia. Digo que não sei exatamente a época exata em que isso começou, poisnunca imaginamos estar vivendo aquele dia, aquele dia que mudará tudo. Que será o 360°. Aalavanca. O botão de mudança para uma nova realidade. Apenas lembro de que eu estavamuito incomodado com os sapatos, e a pele franzida pelo sol direto, em sua secura,causava-me ainda mais tormenta. Quando olhava para o relógio, vendo se chegaria a tempo,tentando acelerar o passo, fui abordado por uma elegante mulher morena, de saia social pretae camisa branca. Desviei o olhar, mantendo apenas o relance, na vontade de não acabardiscorrendo em demora na possibilidade dela continuar falando comigo. Mas ela insistiu."Senhor!". Fiquei surpreso de ser chamado assim e balbuciei algumas coisas rápidas,demonstrando não querer conversa, enquanto continuava caminhando. Mas ela, insistente, foiatrás. "O assunto é rápido! Dois minutinhos!" 一 disse. Relutante, parei, tentando demonstrarmeu descontentamento numa expressão nada feliz. Nesse momento, ela, com uma pranchetaem mãos, apresentou-se como pesquisadora e cientista social. Confesso que nesse momento,um esboço de interesse formou-se sobre mim. Puxando alguns papéis da prancheta e umacaneta esferográfica do bolso, perguntou-me se eu era morador da cidade. "Sim, sou daquimesmo do Rio". "Certo!" — transcrevia com os seus olhos amendoados baixos, aparentandoum implícito lamentar, escondidos sob os óculos. "É... você conhece este bairro?". "Sim, sim,sempre o uso para ir ao trabalho". "É muito perigoso?". "Um pouco, mas acho que hoje emdia é difícil encontrar um lugar que não seja". "Entendo!" — respondeu séria, sempretitubeando nas palavras. "Moça, eu estou com pressa!". "É rápido... eu preciso saber, na suaopinião, o que deveria ser feito com os usuários de drogas, moradores de rua, criminosos etantos outros grupos considerados indesejados na sociedade?" — questionou deixando cairalgumas folhas no chão, sem muita precisão na voz. "Hã?" 一 manifestei. Com a minhareação, a moça, nitidamente constrangida, tentou tergiversar, falando sobre a infraestrutura dacidade, dizendo ser preciso um espaço especial para esses grupos sociais. "Qual o seu nome?De onde você é? Para que tipo de lugar estas informações estão sendo coletadas?" —questionei diretamente. Ainda mais embaralhada, explicou-me que já estava tudo certo, queeu poderia ir. "Não! Quero saber para que instituição você trabalha!" 一 insisti. Fixando osolhos nos meus, espelhados feito uma poça d'água, senti que algo dentro de si estavadesencaixado, difuso e inquieto, do qual ela não tinha controle e um simples riscar lhe faria iraos ares em palavras descontroladas para sair. "Por que você não pode me falar?" —questionei, insistente. Mas acuada e nitidamente procurando se segurar, apertou fortemente aprancheta e os papéis contra seu peito e caminhou na minha direção oposta, olhando, receosa para trás, onde eu estava. Estático e sem entender, fiquei de mãos abanando e logo atinei-medo motivo pelo qual estava naquela rua e continuei meu caminho ao trabalho. 

O Frigorífico Luz VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora