XII

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O reflexo dos balões volumétricos, erlenmeyers e béqueres deixados sobre o balcãodenunciavam a sombra aproximando-se envolvida em coragem, na ânsia de brigar pela vida.Na sensação de aproximação, o rosto virou-se para trás, desprendendo a atenção dos botõesda roupa especial anti-radiação que tentava calmamente fechar. Num súbito instintivo, jogousuas mãos sobre a cabeça, na possibilidade de protegê-la. O prisioneiro enfim concluía suamissão de estilhaçar o copo de vidro usado pelos cientistas no rosto do homem que se vestia.Caído, o homem tentou se levantar e reagir, mas em pânico, o prisioneiro pegou um dos cacosde vidro pontiagudo e cravou em sua jugular, cortando junto a palma da sua mão.— Meu Deus! — sussurrei desesperadamente para mim mesmo ao ver o homem caído sobreos meus pés. Rapidamente peguei sua roupa branca e vesti. O que eu faço agora? O que eufaço agora? Senhor... Girei o meu corpo à procura de algo que pudesse usar como arma.Decidi arrancar o pedaço de vidro cravado na pele do homem e guardar. Peguei a camisetaque ele usava por baixo, rasguei e enrolei na minha mão para estancar o sangue e com suaoutra parte esfreguei o meu rosto sujo, limpando-o. Coloquei a proteção sobre a minhacabeça, o que ajudaria no disfarce. Aspirei profundamente o ar tomando energia e arrastei ohomem pelos braços até a máquina de luzes que antes eu havia sido colocado e girei a travagiratória, trancando-a. Suspirei profundamente, ventilando os pulmões cansados e girei amaçaneta da porta. Eu vou fugir daqui nem que eu tenha que dar a minha vida pra isso! Aporta estava aberta diante de mim. Olhei para os dois lados, mas nada podia ser visto alémdas paredes brancas. Caminhei, como no meu sonho, até o fim do corredor. Toquei levementesobre a porta vai e vem que dava passagem para outros caminhos, empurrando-a. Inclineimeu pescoço e vi dois corredores, do meu lado direito e esquerdo, marcados com númerosem suas paredes. Na roupa grossa algumas gotas de suor caíam. Mas decidi arriscar, seguipara o lado direito. Caminhei calmamente, procurando não fazer barulho. Após algunsmetros, eu havia chegado ao fim e outro caminho me esperava. Desta vez, de um lado haviauma porta estampando se tratar do almoxarifado e do outro, a direção. Eu poderia seguir oalmoxarifado, mas talvez não encontrasse uma saída por lá, podendo se tratar apenas de umlugar para guardar objetos não utilizados. Por outro lado, eu poderia ser morto pisando nadireção, onde possivelmente estava o "cabeça" responsável por todo aquele lugar. Resolviarriscar e seguir mesmo assim. Minhas pernas tremeram ao ouvir a voz de alguém. Estaqueino caminho e permaneci petrificado. Assim, novamente ouvi aquela voz grossa ressoar atrásde mim. Virei-me em câmera lenta e percebi que de fato o soldado no fim do corredor falavacomigo. De braços fortes e pernas acentuadamente afastadas, caminhou forte e rápido atémim. "Ãn.. senhor... como vai?" 一 gaguejei. "Para onde você está indo?". "Eu vou lá foratomar um ar..." 一 respondi orando para ser convincente. "Com essa roupa?". "É que eu jávolto!". "Essa roupa não deve ser usada fora da sala de raio x." 一 prosseguiu sem ligar paraa minha justificativa, olhando-me de cima a baixo, como se pela minha expressão corporalconseguisse saber que eu estava mentindo. "Tudo bem. Irei tirá-la" 一 disse, dirigindo-me de volta pelo corredor. "Espere aí!". Engoli seco, a cabeça explodia inundando-se em cortisol, ocoração já palpitava como se fosse entrar em pane a qualquer momento. "Sim?". "O que éisso?" 一 apontou para as minhas costas. Torci o corpo na possibilidade de ver. Até quepercebi que a parte de trás da minha roupa roubada estava manchada de sangue. Merda!Possivelmente limpei as mãos antes de sair da sala. "Ah, isso daqui é de um dosprisioneiros." — argumentei. "Certo" 一 deu de ombros sem insistir. Soltei o ar queinconscientemente prendia no peito, curvei as costas rendendo-me ao cansaço e segui para oalmoxarifado completamente abalado, já sabia que seria difícil, mas nem tanto. Abri a portado almoxarifado certificando-me de que não passava ninguém pelo corredor. O ambiente eraescuro, mas logo encontrei o interruptor de luz. Fechei a porta e ponderei se não seria melhordeixar a luz desligada. O cheiro de mofo e poeira triunfaram até minhas narinas. Dezenas decaixas estavam armazenadas em cima de prateleiras de ferro, como muito são utilizadas nasbibliotecas. Ao norte, no alto de uma delas estava uma pequena basculante. Abri rapidamenteuma das caixas. Dentro dela estavam encaixados e brilhosos dezenas de projéteis. Procureicaixas maiores, na possibilidade de encontrar uma arma, mas não achei. Então deixei osprojéteis para trás. Remexi noutras caixas. Encontrei uma papelada de mapas e documentosde pessoas. Entre certidões de óbito, folhas de pagamentos, estava descrito toda vida diáriadentro do local. Desde nossas medições, aos roubos de pertences como dinheiro, celulares,anéis e outros objetos. Alguns álbuns de fotografias ficavam noutras caixas. Olhei por cima,avistei estampados nelas pessoas amarradas em troncos e bombas, e galões intitulados como"armas químicas". Um dos documentos que li com mais atenção, falava sobre um frigoríficoadquirido por José Alberto Simas. 

— Frigorífico? Isso só pode ser um pretexto para não levantar suspeitas. 

Larguei tudo. Sem perder tempo, fui até a basculante. Tirei parte da roupa roubada, iniciandopelo protetor de cabeça, pois seria mais fácil para passar pela pequena janela. Apoiei um péem uma prateleira e o outro, noutra. Espiei para fora. Era dia, talvez fosse umas três da tarde.Lá só podia ser visto um grande campo, como os de futebol e atrás uma vasta vegetação deseringueiras, pinheiros e outras árvores frondosas. Apaguei a luz para não chamar atenção. Aluminosidade de fora entrou imponente revelando a poeira que pairava pelo ar. A basculanteera pequena, fiquei apreensivo analisando a possibilidade do meu quadril ficar preso nela.Passei minha cabeça olhando melhor ao redor, assim percebi que de fato não havia ninguémpelo campo. Impulsionei meu tronco, como num salto na água. Minha barriga apertoudolorosamente contra o alumínio da janela. Quando eu já estava com metade do corpo defora, chegou a vez do quadril. Com as mãos escorregando pela parede do lado externo, jogueidiversas vezes meu corpo violentamente para fora, pois estava difícil. Não pode ser!Inacreditável! E assim fui forçando, até o momento em que caí ao chão do outro lado,torcendo as engrenagens ruidosamente da janela, deixando-a solta, nitidamente quebrada. Aolonge, em meu lado direito estava um grande portão de madeira, segurando uma placa emformato de crânio bovino. Isso daqui é um frigorífico mesmo! Ao lado, duas torres colossaisagigantavam-se sendo usadas como guaritas. Nas duas, dois homens estavam sentados decostas para mim. Não posso ficar aqui! Pensei que seria melhor andar do que me rastejar,pois chamaria menos atenção, por isso de pé em pé, andei calmamente pela grama no lado oposto do portão, como se fosse apenas mais um dos funcionários. Logo avistei umaconstrução, ou melhor, algo que parecia uma câmara. Numa janela vi pessoas conversando.Abaixei-me e fui engatinhando pelo campo, até chegar numa placa que indicava, com umaseta, que a construção que acabara de ver tratava-se, de fato, de uma câmara, ou melhor, umacâmara de gás. Focado na janela, onde os homens conversavam, um deles me olhou. Levanteifingindo ser apenas mais um deles e estava abaixado juntando algo do chão. O homemsinalizou ao outro, à sua frente, com a cabeça. Eles se levantaram. Resolvi correr sem rumo.Avistei uma outra construção, desta vez de tijolos à vista e com uma grande chaminé feito asdas usinas. Abri a porta grossa de madeira, vendo jogado no chão um par de pés adultos,seguido de outros e mais outros. Todos empilhados como massas cruas e misturadas ao solo.Ao fundo, dois homens estavam. Fiquei agachado, tentando achar uma solução paradespistá-los. Decidi deslizar por cima de um corpo quase amorfo. Sem rosto e sem sexo.Completamente desfigurado. E ali fiquei.

O Frigorífico Luz VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora