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O tempo se arrastava, já não sabíamos mais em que dia estávamos, eu contava dois,mas parecia o mesmo, ou até um mês. Frequentemente o calor que sentíamos aumentava e obafo quente do cubículo nos fazia gotejar em bicas e o suador subia encharcando, não apenasnós, mas as paredes, que exalavam ainda mais cheiros desagradáveis. A quentura não pareciaser algo normal, mas sim, provocada por um fogão, forno ou qualquer outra máquina queatingia altas temperaturas e estava ali próxima. Combinamos de fazermos nossasnecessidades apenas em um canto, para que assim, o lugar não ficasse tão insalubre, mas aurina e as fezes, misturadas ao nosso suor, criavam um cheiro azedo nauseante, quaseinsuportável. No fundo, eu sabia que o cheiro estava muito pior e que nosso olfato já toleravaboa parte dele. Já fazia muito tempo que o menino e o velhinho haviam sido levados, e Lúcia,mais conhecida como Lú, ainda chorava em sua posição jogada no canto da parede por contado filho. Naquele momento, incomodado por tantas coisas, eu já não sentia tanto a sua dor.Minha cabeça apenas focava nas maneiras que poderiam me tirar de lá. Pensei em mataralgum soldado que viesse, mas como? Poderia pegar a sua arma e dar-lhe um tiro, mas edepois? Certamente seria alvejado por um batalhão do lado de fora. A única posição possívelpara ficar era curvado sobre nossas próprias pernas, assim como um penitente, pois oambiente, com sua luz fraca, falta de espaço e sem um móvel sequer, nos deixava aindamenores. A cabeça equilibrava-se no vai e vem do cansaço. Num súbito aterrador,desprendi-me do mundo. Avistei os grandes prédios da rua rotineira do meu trabalho queconhecia bem. Os pássaros, cada um com seu canto, criavam na vida a melodia da leveza.Minhas pernas apertaram ainda mais uma na outra, como num ato vão de um momentodesesperado, ao roncar do estômago me lembrando de comer e eu sem uma única migalhapara lhe dar. Levei um susto ao sentir cada um dos meus dedos sendo esmagados lentamente.Olhei para cima, a porta estava aberta. O homem que outrora levara o velhinho e a criança,estava de volta. Atrás de si, o velhinho Erivelton, com a coluna ainda mais curvada, trajandoapenas suas vestes íntimas e panos sobre os braços, sentou-se no chão.

— Onde está meu filho? — gritou dolorosamente a mãe. 

Com um sorriso debochado e um grunhido, o homem de testa longa, avançada pelos olhosfundos, deu-nos as costas. Neste momento, meus olhos fixaram no idoso, que tremia os lábiossem parar, soltando gemidos angustiosos. Com medo, permanecemos todos em nossoslugares. Passando as mãos pelos cabelos brancos incessantemente, lançando seu corpo parafrente e pra trás como um pêndulo, assumindo tonalidades púrpuras e arfandoanimalescamente, despertou o terror na mulher que chorava. 

— Esse homem está possuído! Está até babando! — exclamava apontando para ele.

E o idoso gemia sem parar. Com cuidado, projetei meu corpo em sua direção sem melevantar. Pousei minha mão sobre a camiseta que havia sobre seus braços. Senti a temperatura fria. Ele continuou do mesmo jeito. Quando puxei-a, para minha surpresa o membrodesfez-se em peles desfiadas caindo pelo chão. Seus ossos estavam expostos entre a carneavermelhada e sua mão havia sido tirada. 

— Meu Deus! — mas nada o homem esboçou — você não está sentindo dor? — questionei. 

O homem, com os olhos fixos num ponto vazio e aleatório da parede, respondeunegativamente com a cabeça. Passei meus dedos com cuidado sobre o braço, que nasextremidades tinha a pele fragmentada e ele olhou apavorado para mim. 

— O braço dele está congelado, por isso está indolor. — soltei. 

Nesse momento, ficamos alertas. De algum lugar próximo, gritos foram ouvidos. 

— Onde está meu filho? Me fala! — disse Lúcia ao idoso.O homem, desviando o olhar da parede e soltando lágrimas, respondeu: 

— Ele ficou lá.

 — Onde? 

— Não sei. Só sei que jamais sairemos daqui. — respondeu ele, em meio ao choro de dor,apertando fortemente o braço que já descongelava em pingos de água e sangue. 

As próximas horas foram terríveis. Arrastaram-se na agonia de ver Seu Erivelton berrando.Suando frio e contorcendo-se, implorou a todos para que tirássemos sua vida. 

— Vocês podem me sufocar, bater, enforcar, qualquer coisa. Mas salvem-me! — imploravaamargamente com seu rosto franzido de dor, mas todos o evitavam com o olhar. 

— vai! Meajude! — gritou para Jackson apertando fortemente a camiseta sobre a fratura exposta quedeixava algumas gotas de sangue cair. 

O homem desnorteado começou a dar fortes chutes na porta de ferro. De um jeito tãoagressivo, que assim como eu, todos ali jamais esperariam de alguém de sua idade. Nãodemorou muito para que seus berros e chutes fossem ouvidos pelos soldados que passavampelo corredor. E assim, com outras pessoas, Erivelton foi levado também e nunca maisvoltou.

O Frigorífico Luz VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora