II

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O bocejo esticado dava indícios de que a noite já me enlaçava em suas profundezas.Estava realmente cansado. Olhava minha sombra cinzenta no chão marcando cada passo sobo reflexo das poças frias do asfalto e ansiava voltar para casa. Os calçados riscavam naspedras salpicadas pela rua debaixo do sol fraco que já quase se punha e o lumiar amareladoda lua aparecia na volta do trabalho após a manhã chuvosa. As ruas estavam vazias e asjanelas dos grandes prédios comerciais começavam a ser fechadas num entardecer turvo ecalmo. Concentrei-me no alto de um deles, onde pousara nas antenas um pássaro nãoidentificado por mim — pelo tamanho talvez seja uma águia, ou um corvo — conjecturavapara mim mesmo. A temperatura caía e as casas exalavam cheiro de comida em meio ao meuestômago roncando. O dono da padaria puxava agressivamente a porta metálica barulhentapara baixo e um jovem advogado apagava as luzes do seu consultório. Eu apenas caminhavalouco para chegar logo em casa e poder descansar. Num estalo, escutei alguns ruídosestranhos. As veias roxas de minha fronte saltaram em meio à pele alva e cabelos pretos aoouvir uma forte batida da porta de um carro, seguido de sons abafados que vinham de umadas vielas do bairro. Achei estranho. Olhei para os dois lados, não havia ninguém por perto.Cerrei os punhos travando a circulação e engoli seco. Só tinha carros vazios na rua e aspessoas já haviam entrado. Receoso, travei o passo, cogitei a possibilidade de sair correndo etalvez até mesmo buscar ajuda, mas minha curiosidade falou mais alto. Decidi seguir o som.Por entre os limites da parede de um dos prédios, espichei a cabeça me segurando ao concretoe vi por entre um saco plástico, os olhos arregalados e saltados de um homem mordendoviolentamente uma mordaça e sendo segurado por dois sujeitos encapuzados. De dentro dacaminhonete, atrás deles, grunhidos saíam incessantes. Era um sequestro. O homemamordaçado, ao me ver, disparou balbucios nervosos na intenção de ajuda, o que despertou aatenção dos dois homens que o seguravam. Com os olhos estatelados, sem conseguirpronunciar uma palavra sequer, travei no mesmo lugar sentindo apenas o vento mover-se aomeu redor. Os dois atiraram o homem capturado no chão da caminhonete como um saco decimento e correram em minha direção. Deixei cair meus objetos, estilhaçando meus óculos deleitura e corri para o lado oposto. Consegui entrar em outra viela próxima com um deles atrásde mim. Para o meu azar, o outro homem deu a volta no prédio que circundava o caminho eme encontrou na outra saída. Estava encurralado. Sem conseguir fazer muita coisa, um delespuxou-me pela camiseta azul-marinho e entramos em luta corporal com um soco desferidopor mim sobre seu rosto coberto pela touca ninja. Com o impacto, tropecei para trás, mesmocom minhas pernas tentando me manter em pé. O outro homem aproveitou e se aproximoucobrindo meu rosto com uma sacola, bloqueando meus pedidos de socorro, igualmente comooutrora o havia visto realizar com o desconhecido detido. Encaminharam-me pelos braços atéo veículo. Um tremor apossou-se de mim seguido de um desvanecer de imagens. A paneauricular acionou um ruído estridente e insuportável dentro da minha cabeça e num súbitomeu corpo caiu inconsciente de encontro aos pés e pernas das pessoas sentadas no chão dacaminhonete. Sem saber as horas, o lugar em que estava e para onde estava indo, meu corpo balançava, com as mãos presas à lombar numa ânsia abissal que me recobrou a consciência.A sacola já não estava mais em meu rosto e eu podia respirar, mas meus lábios foram coladoscom uma forte fita silver tape. Logo entendi o motivo do enjoo, o chão da caminhonete estavalavado de urina e as outras pessoas com as faces enrugadas de medo, como uma laranjamurcha e os pés encardidos, não cheiravam bem. Todos eles se espremiam dentro de simesmos, como se quisessem partir daquele local nem que fosse para seus interiores. Dentroda caminhonete estava escuro, com vidros bloqueados por densa espuma. Pelo que percebi,ali havia de tudo; idosos chorando, crianças sujas, jovens raquíticos e eu, que parecia destoarde todos. Uma mulher fungando, esquelética como uma carranca selvagem, chamou minhaatenção. Ela permanecia intacta, como se não estivesse ali. Seus olhos baixos e fundos,cobertos pelos cabelos grudentos entre os fios, pareciam sem brilho e leitosos. Ocos como sefossem de plástico. De peles sobrando entre as juntas e articulações, os peitos, glúteos,panturrilhas, órgãos e barrigas eram encobertos como embalados a vácuo. O peso de todos aliestava abaixo do normal. Um burburinho vinha da cabine do motorista, deixando-nos aindamais apreensivos. A velocidade parecia estar acima da média permitida. A maioria chorava.Sem conseguir me mover, tive que continuar de bruços no chão, tentando não encostar maispartes do corpo na urina que se movia rapidamente com a velocidade de um lado para ooutro. Depois de muito rodarmos pelas estradas lisas, as rodas do automóvel deslizaramsecamente e trepidante o chão, dando-me indícios de que estávamos passando por ruasnão-asfaltadas, possivelmente de chão batido. Quando aquilo tudo parecia não ter fim, o carroparou, os choros cessaram e o silêncio imperou no local. Ouvimos uma rápida conversaincompreensível entre homens do lado de fora e um feixe de luz entrou pelo buraco da porta,como se tivéssemos entrado num paraíso, distante do breu da caminhonete. Mas era apenas ocomeço do inferno. A entrada de ar limpo de fora, evidenciou o cheiro azedo presente ali aoponto de sentirmos um gosto ácido na garganta. Deitado de costas para a porta, não vi o queatrás de mim se passava. A mulher esquelética, que antes fungava, fora puxada violentamentepara fora do veículo e logo em seguida os outros. Por estar no chão, eu fui o último. Minhacamiseta cheirava a urina seca e eu estava absurdamente nauseado. Ao virarem-me, avisteirapidamente o homem mascarado e um galpão de madeira logo atrás, a noite já havia caído euma fina neblina era vista debaixo do poste de luz que iluminava toda a cena. Uma toucapreta fora enfiada violentamente sobre o meu rosto, mas deixava passar o cheiro de tabacovindo de fora. Um soco fora desferido em meu estômago por eu ter tentado evitar a colocaçãomexendo a cabeça. Pelos micro-furos do tecido de algodão, entrava feixes de uma forteclaridade. Caminhamos muitos metros, a todo momento escoltados por homens usandofardas, como se fossem militares e por fim jogaram-nos no chão, dizendo que podíamos tirarnossas toucas. Todos nós fomos medidos e pesados e após todo o processo, um número foramarcado em meu braço a ferro em brasa: 84. Eu só conseguia pensar que antes de mim, 83outras pessoas encontravam-se ali. E após eu, muitas outras também poderiam existir. O lugarera cinza, abafado, mas eu incrivelmente tremia, talvez por medo. Não havia lugar parafazermos nossas necessidades básicas. A única coisa que nos mantinha em contato com olado de fora era uma pequena abertura retangular na parte de cima da porta de ferro. Após nosdeixarem ali, não sabíamos o que fazer e o que aconteceria. Ficamos todos calados,entreolhares, com o pouco de luminosidade que entrava após a porta ter sido fechada. Minhavontade era levantar e espiar pela abertura, mas sabia que certamente seria uma péssima ideia, então fiquei quieto. O silêncio e a morosidade com que as horas passavam era aterradore só tínhamos uns aos outros e as paredes para olharmos. Estávamos em sete pessoas, quatrohomens adultos, duas mulheres e uma criança. Em volta, uma grossa crosta escura de sujeiradescia pelas laterais do teto, talvez fosse mofo, não sei, pois não conseguíamos ver direito.Alguns líquidos estavam derramados pelo chão, como se outras pessoas já haviam estado ali.Tudo tinha péssimo cheiro, desde as paredes azedas até o chão e o grupo inteiro. Ninguémpassava pelo corredor. Cansado do trabalho, já sem energia para permanecer em pé, mesmosem querer, apaguei, confirmando a tese de que a noite foi feita para dormir e não vermos oque acontece quando chega a escuridão.Durante a madrugada, uma luz vermelha acendeu no fim do corredor nos clareando. Em meioao silêncio, sucessivas batidas metálicas nos despertaram e pequenos ruídos de engrenagensenferrujadas também eram ouvidos a todo momento. Os batimentos cardíacos aceleraramacordando os músculos adormecidos, o timbre dos gritos que entravam rasgando nossosouvidos, eram de uma possível criança. Ninguém ousava mover um palmo e seguimosacordados, encarando tudo ao nosso redor. Alguns escondiam o rosto, outros mexiam aspernas ritmicamente e eu apenas criava possíveis cenários do que estava por vir. Após tantotempo parado e sentado na mesma posição, tentando manter o tronco ereto, capoteinovamente num profundo cochilo improvisado sobre os joelhos. Despertei com a cabeça deuma das mulheres pesando sobre o meu ombro. Tirei-o e ela rapidamente acordou,constrangida, acanhando-se mais na parede. O meu estômago se contraia, mas o nervosismodiminuía a necessidade de comer. Sabíamos que já era dia, pois a luz que entrava pelopequeno retângulo da porta parecia natural. A mesma, dependendo de como nos movíamosali dentro, permitia ver melhor o rosto de alguns. Mesmo em corpos diferentes, os traçospareciam ser os mesmos. Bolsas vermelhas debaixo dos olhos eram máscaras usadas portodos. A dúvida que circulava implícita nos quatro cantos era quando iríamos comer, mas otempo passava e percebíamos que estávamos sendo ingênuos em esperar isso. Mesmoreceoso, decidi quebrar o silêncio, perguntando entredentes o nome deles. Sem obterrespostas, mudei a pergunta: 

— Vocês trabalham com o quê? — questionei tentando fugir da minha verdadeira dúvida. 

Recebi como resposta de todos o menear negativo de cabeça e a mudez. Possivelmente nãotrabalhavam. 

— Vocês são moradores de rua? — fui incisivo, direto ao ponto.A maioria confirmou. 

— Não, eu moro numa pensão, mas sou GP. — respondeu uma das mulheres.

— Garota de programa? 一 perguntei.Assentiu em silêncio. 

一 Me chamo Cleide. 一 completou com a voz rouca e pigarrenta a mulher que aparentava teruns 40 anos. 

— Eu moro numa comunidade cigana. 一 falou timidamente um dos homens se identificandocomo Elton. 

一 E você? 一 perguntei ao homem encolhido, mas não recebi respostas. 

一 Ele é morador de rua também, se chama Jackson. 一 respondeu Cleide. 

一 Não fala? 一 questionei. 

一 Mais ou menos. Os pais eram usuários também, por isso hoje ele tem sérias sequelas.

一 Ah... 

一 Eu só moro na rua com o meu filho. 一 falou a outra mulher que escondia seu rosto entreos cabelos loiros da criança ao seu lado. 

Tentando traçar os motivos pelos quais havíamos sido sequestrados, percebi que quase todoseles eram usuários de drogas, sejam barbitúricos, anfetaminas ou álcool em excesso. Estavamem situação de vulnerabilidade social e eram pessoas marginalizadas pela sociedade. Isso mefez lembrar a manhã em que ia para o trabalho e fui abordado pela mulher morena nãoidentificada. 

— Eu ouvi da cabine da caminhonete, que eles estavam a caminho da cidade de Cambuci,aqui no Rio mesmo. — sussurrou um senhorzinho barbudo de voz grossa se identificandocomo Erivelton. 

Em meu interior, um turbilhão de perguntas nascia em meio ao medo das incertezas. Aquilotudo parecia muito estranho. Possivelmente não era um simples sequestro criminoso, no qualnossas famílias seriam extorquidas. No meio da conversa, ouvimos passos secos amplificadospelo vazio do corredor. Encolhi minhas pernas e tentei manter os olhos fechados nainsistência do tremor das minhas pálpebras. Alguém abriu a porta calmamente. Naquelemomento, percebemos que a claridade criada no pequeno espaço, não era luz natural vinda defora, mas sim, o reflexo das diversas lâmpadas incandescentes posicionadas no teto docorredor. Suas botinas evidenciavam a direção em que estava, sem precisarmos ver. Seu peitosegurava uma brilhante estrela dourada ao redor de diversos emblemas na farda verde-escuro.Acendendo um cigarro, após uma tragada, ele soltou entre a fumaça: 

— Eu tenho uma pergunta crucial para vocês, meus caros. Qual a diferença entre um serhumano e um pedaço de madeira? Vocês sabem me dizer ou não?De olhos abertos, focando o chão, assim como os outros, não ousei me pronunciar. Semperder tempo, ele mesmo respondeu:

— Um tronco nasce com sua gloriosa missão e morre sem jamais desvirtuar o caminho. O serhumano, bom... depende a sua vida, do valor que os outros dão a ela. — soltou uma risadasardônica. — alguém será levado. Quem se prontifica, hein? — emendou engrossando o tomde voz e jogando a bituca do cigarro no chão perto de nós. 

Caminhou de um lado para o outro, vendo que nos espremíamos cada vez mais na parede.Parou em frente ao velhinho barbudo, Erivelton, que outrora contara o que havia ouvido nointerior do veículo. 

— Você! Você daria sua vida por aquela criança? — questionou apontando para o meninoque escondia o rosto atrás das costas de sua mãe. 

Olhando para a criança, para o homem e o restante das pessoas, soltou fraco e arrastado,possivelmente por conta do medo: 

— Sim.O homem soltou uma forte risada grotesca, evidenciando seus dentes amarelados e seus olhosprofundamente marcados pelas linhas em volta. 

— Então pode vir os dois! 

E a criança prendeu-se sobre os cabelos, braços e todas as outras partes que conseguia segurardo corpo da sua mãe. A mulher desfez-se em lágrimas dolorosas, dizendo que poderiamlevá-la ao invés do filho, mas o homem, petrificado como feito de rochas, com o peitoestufado, apenas apontou o dedo para a criança e sinalizou a porta. Era para ele ir. O velhinhojá esperava no corredor branco, e mãe e filho choravam sem parar grudados um no outro. Ohomem, irredutível, deixou para trás aos prantos a mãe que se contorcia, ao levar a criançapelo puxão dado em seus braços. A porta fechou-se e os gritos da mulher vibravam nossostímpanos, sendo quase ainda mais insuportável ficar naquele lugar. Sentia muito por ela, masàquela altura, era melhor seu filho do que eu. 

O Frigorífico Luz VermelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora