capítulo 1

24 2 1
                                    

    É a quarta vez que eu escuto esse mesmo discurso, ele age como se algo fosse realmente mudar. Todos sabemos que os Dickinsons têm a melhor reputação, nada precisaria mudar diante a um concurso de culinária meia-boca. Mas não, claro que meu pai não deixaria isso barato. Afinal, é o quarto ano seguido em que ele tenta ganhar e dessa vez os concorrentes estão cada vez mais preparados, vai ser difícil conquistar novamente a primeira colocação.

— Emily! Nós precisamos ir! Agora!

    E assim começamos mais uma quarta-feira, o dever nos chama. Não me pergunte por que o meu pai leva isso tão a sério, nem eu mesma sei a resposta para isso. Mesmo assim, por fazer parte dessa família (que muitos odeiam), preciso comparecer a todos esses eventos chatos, onde apenas velhos milionários estão presentes. Honestamente, espero que todos morram de causas nada naturais, estou cansada de ser assediada toda vez que volto a esses lugares.

— Emily, o que você achou do meu discurso? — Ele pergunta claramente ansioso.

— Ótimo, pai.

— Está vendo, até mesmo a Emi achou isso, pai, sossega um pouco! — Lavínia diz visivelmente irritada.

— Mesmo assim, querida, acho melhor repassá-lo pela última vez.

    Eu sabia que não seria a última vez, mas não me importava, afinal, já havia aprendido a tolerar esse tipo de coisa desde que nasci. Apenas foco em observar a paisagem, que por sinal, é horrível, assim como meu dia. A única coisa que poderia me salvar agora seria um imenso pote de sorvete e três horinhas (no mínimo) livre de afazeres e reclamações.

    Mas como a vida do gay não é fácil, isso não seria possível no dia de hoje.

[...]

    Uma hora de trajeto, isso pelo erro incompetente do meu irmão, sinceramente, nada poderia estar pior. Entramos no local, cuja iluminação era totalmente ruim e encontramos o famoso causador de pesadelos.

    O senhor Chester, mais conhecido como "arranca dentes" e pouco conhecido como "o grande revolucionário da moda gastronômica". Simplesmente famoso por fazer nada de sua vida e por, magicamente, em poucos meses de carreira, sem qualquer tipo de estudo, aparecer milionário. Nada novo por aqui.

    O velho cão de guarda dele, Caio Hunter, é ignorado o suficiente para que possamos passar sem ao menos cumprimentá-lo, talvez eu devesse o saudar, mas nesse tipo de lugar, é melhor se manter superior. Não que seja um lugar perigoso ou cheio de mafiosos (embora seja), para os que não sabem das histórias e especulações, é apenas um local usado para faturar dinheiro.

    Talvez seja por isso que tanto implorem a presença de meu pai aqui.

    E então, finalmente começam os trabalhos, nós, como quase anfitriãs, posicionamos nosso prato principal sobre a mesa dos jurados. Todos permanecem com seus olhares gélidos, como se nunca tivessem visto qualquer rastro de cor. Suas bocas salivantes indicam o mínimo de tesão que sentem pelo mísero trabalho em que atuam. Seus cabelos mal cortados e bigodes mal aparados apenas mostram o óbvio: o quanto homens são esdrúxulos.

    No total são cinco, que ao provar, se encantam de primeira. As bocas, que até então se formavam em séria harmonia, agora sorriem em aprovação. Meu pai deve estar muito orgulhoso de si mesmo, afinal nunca reconheceria que o trabalho foi quase todo feito por Maggie.

    A ganância do homem me assusta.

    Mas isso é história para outro tipo de situação e por agora, eu só quero que isso acabe e eu possa ir para casa sem escutar nenhum comentário machista ou sexista sobre meu corpo. Péssima ocasião para usar vestido curto. Jamais repetir isso novamente, anotado. 

[...]

   Depois de horas de enrolação, agradecendo e cumprimentando estranhos que nunca vi na vida, decido enfrentar o frio cortante e seguir em direção aos bares de esquina. Isso mesmo, a grande mimada de Copenhagen (na Dinamarca) frequenta lugares chulos como esses. Falando assim até parece que eu ligo para a minha reputação.

    Peço um táxi, costume de pessoas que podem ser assassinadas a cada esquina que vão. Embora seja muito caro, é um meio necessário para continuar viva e não me importo com o dinheiro que gasto fazendo isso, afinal todo o dinheiro gasto vem do bolso do meu pai. E ele não pode sequer me dirigir um sermão pois a culpa de eu precisar fazer isso é inteiramente dele. 

    Dica do dia: não se envolvam com política, ou muito menos com mafiosos.

    Adentrando o bar, sinto o cheiro rotineiro, minhas narinas já haviam se acostumado com aquele lugar, isso revela o grande número de vezes que estive aqui (spoiler: foram mais de 100, afinal existem 365 dias no ano). Não que eu seja uma viciada ou coisa assim, claro que eu já tive uma pior fase, mas nada que uma Dickinson não pudesse superar.

    Chamo a atendente, Helena, que já havia virado minha amiga, ou pelo menos a ouvinte de meus desabafos. Ao me ver, ela logo entende e me leva ao meu lugar secreto com um largo sorriso no rosto, nunca saberei se é um sorriso genuíno, tomara que seja. E assim, chegamos até um pequeno espaço, mais parecido com um sótão, onde residem algumas mesas fechadas, que são usadas para casos de lotação do bar, alguns posters de divulgação e algumas mobílias com aparência de envelhecidas. 

    Ninguém sabe desse lugar, nem mesmo meu melhor amigo, George. Eu uso esse espaço para me conectar comigo mesma nos dias mais difíceis, e por o dono do bar ser meu tio e fiel escudeiro, Fhilipe Dickinson, tenho entrada liberada aqui. E poderia ter tudo de graça, mas recusei, acho injusto me aproveitar de meu tio a esse nível. 

    Como eu disse, já frequento esse lugar há anos, é possível perceber isso pelos desenhos nas paredes, os poemas colados no corrimão da escada, as palavras soltas escritas no chão e nos móveis antigos e até mesmo pelo que chamo de principal para me identificar, meu símbolo de passagem, uma adaga envolta a palavras, que desenhei em meu abajur quando tinha 10 anos. 

    Não que eu fosse uma grande desenhista ou coisa do gênero, mas esse símbolo (embora mal feito) é muito importante para mim. Marca o dia em que eu escrevi meu primeiro poema e o dia em que perdi minha primeira alma gêmea, meu cachorrinho, skittles. Deixo escapar uma lágrima ao lembrar dele, mas rapidamente a limpo, hoje não há tempo para chorar.

— Está entregue, mocinha, vê se não exagera nos surtos, hoje a clientela tá agitada. — Diz Helena me tirando de meus devaneios. 

— Pode ficar tranquila, Lena, nada de surtos por hoje. — Digo após soltar uma risadinha nasal.

E então ela sai. E assim posso voltar ao meu mundo. Sem interrupções. Bom, pelo menos era o que eu imaginava...

I don't believe in true love, but I believe in you - EmisueOnde histórias criam vida. Descubra agora