Capítulo 5: Três patas

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(01/04/22; 14:27; Mathias Aguiar)

     Aqui estou eu, no abrigo de animais, depois de encher muito o saco da dona Claudia e seu Marcos (meus pais) para adotar um novo animalzinho de estimação. Nosso último cachorro, o Bolota, morreu a um ano e meio. Todo mundo ficou abalado, o cachorro viveu nove anos na família. Lembro dele desde que me conheço por gente. Eu sei que nenhum animal vai substituir ele, mas eu superei sua partida e estou pronto para adotar um novo animalzinho para fazer o mundo um pouco melhor; ou talvez o mundo dele melhor.

     Ando por corredores de gaiolas, onde cães latem desesperados por um lar e gatos se esquivam de medo. Quero levar todos, mas não posso. A dona do abrigo é uma mulher ruiva e rechonchuda, com olhos castanhos muito bonitos e sardas no nariz. Sua voz é suave e acolhedora. Posso ver que ela tenta fazer o melhor possível pelos animais, mas se torna difícil quando não se há liberação de verba para a causa animal e nem pessoas dispostas a abrirem seus lares para recebê-los.

     — Moça, quero ver o animal mais rejeitado — peço.

     Ela olha para mim, confusa. Acho que isso não é um pedido muito comum.

     — Como assim? Aqui todos foram rejeitados.

     — Eu sei, mas quero um em que o pessoal sempre olha, mas não adota.

     Ela sorri para mim e desaparece atrás das gaiolas. Quando volta, ela traz consigo um gatinho filhote envolto em uma manta marrom. Sua pelagem é branca com algumas manchas pretas, sua orelha esquerda está pela metade e lhe falta uma pata. Dói meu coração ao ver isso. Qual filho da puta teve coragem de fazer isso? Leah, como se lesse meus pensamentos, diz:

     — Esse é o Chaplin, tem três meses e nasceu assim mesmo. Nenhuma criança quer um gato que fica tropeçando e não brinca direito. E os adultos não querem um gato que tem um bigode parecido com o do Hitler.

     — Por isso o nome Chaplin — respondo.

     — Sim, acho que às vezes só precisamos mudar a perspectiva de como vemos as coisas. — Ela sorri com esperança. — Então, vai querer levar o pequeno Chaplin?

     Quando o bichano se espreguiça e solta um bocejo, eu tenho certeza de que ele precisa de mim. Ou eu preciso dele. Chaplin abre os olhos, são verdes. Sua pupila dilata e, pode ser meu cérebro imaginando, mas ele parece sorrir.

     — Com certeza — respondo e ela me entrega Chaplin. Agarro-o como se fosse um bebê e sussurro: — Vamos para casa, amigão.

(01/04/22; 16:21; João Santos)

     Recebo três fotos seguidas de Mathias. Ele sempre manda um meme de Marvel ou algo nerd muito legal que ele sabe que eu vou gostar, mas desta vez é diferente. As três fotos são de um gato filhote que só tem três pratas e é extremamente fofo. A primeira foto está o gato dormindo enroscado numa manta; a segunda bebendo leite; e a terceira está ele com o rostinho colado com o de Mathias, deixando à mostra sua orelha cortada. Bombardeio meu amigo com perguntas sobre o possível novo integrante da família.

     "Seu nome é Chaplin, peguei em um abrigo para animais. Ele nasceu desse jeito e merece todo o nosso amor. Você pode visitar ele quando quiser ou puder", responde ele e manda um emoji sorrindo e um coração azul.

     Coração azul significa amizade. Ótimo, amigos. Gosto disso, parece certo.

     "Primeiro, eu nem sei onde é sua casa; segundo, eu adoraria", envio e mando um coração azul.

     Hoje completo uma semana de amizade com Mathias, uma semana que tenho meu primeiro amigo. Um dia essa minha paranoia com datas ainda vai ser o motivo do meu choro. Às vezes nem tudo precisa ser lembrado. Ignoro esses pensamentos e vou pintar para clarear a mente. Leva quase meia hora de pinceladas com tinta branca e dedadas com tinta preta para uma versão cartoon do Chaplin aparecer na minha tela. Corro para a sala de estar, onde meus pais assistem tv como dois adolescentes agarradinhos, e mostro a pintura.

     — Filho, eu amei. — Minha mãe sempre diz isso. Ela não entende nada de arte e estilos de pintura.

     — Cartoon? — pergunta papai. Concordo com a cabeça. — Você raramente usa estilo, mas os traços estão impecáveis. Mas por que esse gatinho?

     — Meu amigo adotou um gato que é exatamente assim. Seu nome é Chaplin.

     — Pera, você tem um amigo chamado Chaplin? — pergunta minha mãe, interessada. Contenho uma risada.

     — Não, o gato se chama Chaplin. Meu amigo se chama Mathias.

     — Mais um da internet?

     — Dessa vez não, mãe. Escola.

     — Hum, pode sentando aqui e contando tudo — diz ela, batendo a mão no encosto do sofá.

     E eu sento e conto tudo. Conto de como nos conhecemos no refeitório da escola e como aquele garoto fala alto pra caramba. Conto que sua família também é cristã, mas escondo sua sexualidade e como me sinto em relação a ele. Meus pais parecem satisfeitos e querem conhecê-lo uma hora dessas.

     Ao voltar para o meu quarto, mando fotos do Chaplin e da pintura para Igor. Ele fica curioso, então sou obrigado a repetir a mesma história que contei para os meus pais, mas agora incluindo que Mathias é bi. Ele elogia muito o desenho, mas demonstra indiferença em relação ao Mathias.

     "Isso de ter um amigo novo é muito legal, mas cuidado. Lembre-se que eu vou estar sempre aqui, bebê"

     "É claro, você ocupa o primeiro lugar do meu coração. Agora e sempre", envio para ele.

     Isso não deixa de ser verdade, apesar de Mathias e seu gatinho extremamente fofo estarem ocupando mais espaço da minha mente. Abro a conversa de Mathias e mando a foto da pintura, que com certeza vou emoldurar no futuro.

     "PARAAAA TUDO", ele escreve. Depois manda mais duas mensagens em sequência: "Eu amei. Você pinta bem pra caralho" e "Vai ter que me ensinar"

     "Que tal na próxima quarta? Mas você vai ter que posar aqui em casa", envio e me arrependo.

     "Claro, só pedir permissão para os meus pais. Mas tem um porém"

     "Qual??", pergunto, meu coração acelerando.

     "Precisa almoçar aqui terça, conhecer o meu gato e ser o melhor exemplo de cristão para os meus pais aceitarem"

     Eu quase engasgo com a minha própria saliva. Ainda bem que esse convite não está sendo feito pessoalmente. Penso em todos os piores cenários possíveis que podem acontecer – como derrubar refrigerante na mesa ou não parecer hetero o bastante – porque essa é a mente de uma pessoa com ansiedade.

     "Está bem, euaceito", e envio em sequência: "Mas só pelo Chaplin"

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