Capítulo 6: Transição

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(04/04/22; 10:08; Mathias Aguiar)

     João agora senta junto comigo, a Ana e a Júlia. Aos poucos estamos formando a nossa galera e eu gosto disso, mas fico curioso como nos veem. Nerds? Debochados? Parada gay? Acho que um pouco de cada coisa. Hoje a merenda é arroz com leite e canela, mas Ana não come. A amada é intolerante a lactose.

     — Podemos assistir o segundo episódio de Cavaleiro da Lua quarta na tua casa — digo para João. Ele concorda.

     — Hmmm... papo nerd — diz Julia.

     — E gay — acrescenta Ana —, duas coisas que não entendo.

     Caímos na gargalhada, mas às vezes tenho medo de que as influências religiosas de Ana a tornem mais do que só intolerante a leite. Apesar de as meninas já saberem que João é gay, ele ainda se sente desconfortável, principalmente quando elas fazem alguma insinuação sobre a gente. Quando estou distraído, ainda rindo da "piada", alguém se senta do meu lado. Olho e demoro para reconhecer a figura.

     — Nossa, desculpa. Achei que fosse um me...

     — Mas eu sou um menino — ele diz. — O nome agora é Ari.

     Alice agora é Ari. Ou sempre foi, ainda é difícil para mim entender, mas vou fazer o melhor pra Ari se sentir confortável. Ele está com o cabelo curto, uma camiseta da Sonserina e uma jaqueta de couro por cima. O estilo não mudou muito, mas agora existe aquele brilho no olhar que todo o LGBT tem quando se está livre.

     — Tipo Aristóteles? — pergunta João.

     — Isto. — Ari sorri, revelando um dentinho torto muito fofo.

     — Como está sendo a transição? — pergunta Júlia.

     Todo mundo fica quieto, mas Ari não parece incomodado.

     — Meus pais são psicólogos, então estão lidando bem. E meu pai sempre quis um menino mesmo.

     — Mas eu não perguntei como está sendo pra eles. Perguntei pra você.

     Os olhos de Ari enchem de lágrimas. Juro que se ele chorar, eu choro junto. É tão bom ver Júlia se importando com alguém que não seja um macho escroto que só quer usar ela para satisfazer o tesão.

     — Nossa, obrigado, de verdade. Ninguém nunca pergunta isso diretamente pra mim. Na maioria das vezes só querem saber qual foi a reação dos meus pais, se eles me exorcizaram ou me expulsaram de casa. — Ari ri, mas eu sei que é para não chorar. — Mas, respondendo sua pergunta, está sendo maravilhosa. Achei que era uma garota lésbica e não tem nada de errado com isso, mas aí tinha aquela insegurança com o meu corpo que eu nunca entendia e o fato de não gostar de ser chamado pelo próprio nome ou pronome designado. Isso faz sentido?

     — Nenhum. — Todos me olham com um olhar julgador, inclusive João. — Não somos como você, Ari. Você é você, vê e sente o mundo de uma forma diferente. E não há nada de errado com isso, inclusive eu te amo por isso.

     Admitir que amo um garoto que mal conheço é estranho, mas esse deve ser o sentimento de fazer parte de uma comunidade. Nem sempre vamos nos entender, mas somos família.

     — É verdade — concorda Julia e estende o braço sobre a mesa. Ari assegura sua mão, eu coloco a minha por cima e João sobre a minha. Ana parece indecisa sobre o que fazer. Então o sinal bate para irmos para a aula e a livra da situação constrangedora que ela mesmo se colocou ao hesitar unir sua mão com as nossas.

(04/04/22; 10:07; João Santos)

     Entro na sala de aula acompanhado de Ari, que une nossas classes. A próxima aula é sociologia, com o professor Rafael, o que nos dá algumas vantagens como: sentar-se juntos, poder ir ao banheiro sem ter a necessidade de pedir permissão (um direto nosso que alguns professores ainda proíbem) e total liberdade de expressar nossa opinião – desde que ela não interfira nos direitos humanos de outra pessoa. Ou seja, o professor até ouve opiniões homofóbicas de merda, mas elas jamais serão tomadas como algo correto ou impostas na escola.

     Ari está conversando comigo sobre as novas roupas que comprou, mas para quando escuta o seguinte comentário:

     — Agora é Ari então? — pergunta Ruben. Isso não vai terminar bem.

     — É sim — responde Ari.

     — Hum, interessante, mas nunca tinha visto homens com peitos tão grandes. E aí embaixo, tem quantos centímetros, pequeno Ari? — Ruben provoca.

     — Eu... eu não... — Ari vai chorar e eu preciso fazer alguma coisa.

     Levanto-me e vou até Ruben.

     — Qual é a porra do seu problema? — pergunto.

     — Por que não deixa sua amiguinha bancar o homenzinho e resolver o problema comigo ela mesma?

     Cerro o punho. Eu quero espancar ele. Agora mesmo.

     — João, para! — grita o professor atrás de mim. — Eu ouvi tudo, estava escorado na parede de fora da sala. Você fez aniversário semana passada, né, Ruben?

     Agora estou furioso com o professor. O que essa pergunta idiota tem a ver com o assunto? Vamos cantar parabéns?

     — Sim, senhor — responde Ruben.

     — Hum, interessante, então quer dizer que você já tem idade para responder por si mesmo. Sabia que transfobia pode dar até cinco anos de cadeia? — O professor não espera a resposta: — Acredito que deve saber, já que vai continuar a carreira de advogado do querido papai.

     — Eu também posso processá-lo, seu professorzinho fudido!

     — Tenta e vamos ver de que lado fica as testemunhas. Que tal fazermos um teste agora? Quem for testemunhar a favor de Ruben Fontoura Chimenez levante a mão. ­— O professor espera, mas ninguém levanta. — Agora quem for a favor de mim e do Ari.

     A sala continua sem mover um dedo, mas eu levanto a mão do mesmo jeito. Ari me encara com pena. Eu subo na minha cadeira e prossigo de mão erguida e, em questão de segundos, a turma vai levantando a mão um por um – inclusive os melhores amigos de Ruben.

     — Ari, existe muita gente babaca e eles vão te falar coisas horríveis ­— digo —, mas você é amado. Jamais esqueça disso.

     O professor bate palmas e a turma imita.

     — Diretoria, Ruben. Agora. — E, antes de Ruben sair, o professor acrescenta: — A próxima aula será sobre o que é ser um homem. E eu garanto a todo vocês que só ter um micro pênis no meio das pernas não define isso.

     A turma cai nagargalhada. Mathias vai adorar ouvir isso.

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⏰ Última atualização: Jun 16, 2022 ⏰

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