Eu serei a terra.

Há muito e muito tempo o oceano é objeto de fascínio dos estudiosos, dos artistas, dos amantes... De todos aqueles que pisam na terra, e daqueles que foram bravos o suficiente para navegar em suas águas.

É ínfimo o que sabemos sobre o que há lá no fundo: quais criaturas ainda se escondem em suas profundezas? Quais os perigos que aquilo tudo traz? Com base no que sabemos, a vida desde sempre foi feita para prosperar na terra; as pescas nunca eram tão longínquas em relação ao litoral, as travessias que tínhamos que fazer em alto mar eram apenas para unir um reino a outro que conhecíamos e, em casos de extrema urgência, buscar por novas terras, junto aos tesouros que elas poderiam oferecer. No último caso, raras eram as chances de retorno dos mares desconhecidos. Se, por alguma sorte, os aventureiros retornassem, sempre havia alguma história extraordinária e assombrosa por trás.

Nunca fomos capazes de passar muito tempo nas águas; é tarefa aterradora até para o mais exímio navegante.

Se a vida veio da terra, ou dos céus— fruto dos deuses—, nada impediria que a morte viesse do mar.

Até mesmo os talassófilos, mergulhados no vício cego de um amante, conseguem compreender que, no mar, há mais perigos e incertezas do que a promessa de fortuna. Ondas gigantes, tempestades, criaturas desconhecidas, fome, praga, isolamento... É como se todas as punições dos homens estivessem disfarçadas pela beleza do litoral, quando as ondas calmas são iluminadas pelo pôr do sol.

Poucos são os relatos dos marinheiros que sobreviveram a um naufrágio, ou ao risco de um; muitos são aqueles que nunca mais voltaram. Alguns desses relatos não são confiáveis, são apenas histórias de pescadores que buscaram conseguir alguma fama, mas outros podem marcar no corpo as provas de seus acontecimentos.

Cicatrizes marinhas.

Eu apenas vi uma desse tipo; foi quando eu entrei em uma taberna do porto da minha terra natal. Lembro-me claramente, porque foi a primeira vez que escapei dos muros, foi o primeiro momento em que eu pude conhecer algo além do que minhas correntes permitiam. Eu nunca havia escutado alguém falar do oceano daquela forma, foi como se os narradores dos mitos que eu lia nos livros fantásticos tivessem possuído aquele velho navegante.

Eu também nunca tive a oportunidade de navegar, seja como tripulante de uma viagem ou um pescador, mas admito que, apesar da minha imensa curiosidade, o temor que eu nutria pelas águas era maior.

Como aquele senhor falava com tanta paixão de algo que lhe causou aquilo?...

Ainda que fosse diferente do mar, eu não seria inocente ao ponto de afirmar que as terras firmes são seguras, pois há criaturas que nela vivem que também são a origem de mitos e mistério. No entanto, as terras são território humano, nós podemos ter domínio sobre elas; enquanto que as águas não são territórios de ninguém, elas obedecem às próprias leis.

Além de tudo isso, os humanos não respiram debaixo d'água.

— Visconde?

Imediatamente, meus olhos desfocaram-se da paisagem do outro lado da janela, e minha mente cessou em divagar. Virei-me para dentro da carruagem e olhei o meu acompanhante, tentando não parecer tão desligado.

— Sim, Professor?— indaguei, minha voz suave e calma.

— Eu até estranho quando me chama assim...— disse o senhor, semicerrando os olhos. Sua aparência não demonstrava que ele tivesse mais de cinquenta anos, mas ele tinha cinquenta e seis. Os cabelos loiros, um pouco grisalhos, estavam escondidos sob uma boina, e ele trajava uma roupa elegantemente simples, de tons escuros e bordados não exagerados. Uma vestimenta perfeita para um professor em uma viagem tão longa quanto a que estávamos fazendo. Ele, mesmo não tendo acesso a roupas mais sofisticadas, como as minhas, era uma das poucas pessoas que eu conhecia que tinha senso em se vestir bem.

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