Caminho em direção ao abrigo. O sol ainda não se pôs mas a entrada já está lotada. Diferentes rostos me encaram cansados, sombrios. No início da fila uma mãe embala seu filho, murmurando uma música que não consigo ouvir, mas que parece manter a criança calma. Aquela tranquilidade tem o seu motivo: Essa noite elas têm o que comer e onde dormir. O restante da fila está tenso. Jovens e idosos olham fixamente para a porta esperando que alguém apareça e lhes diga quantas vagas estão disponíveis, mas ninguém aparece. Mais trinta minutos se passam e nada acontece. Algumas pessoas já desistiram e foram procurar outro lugar para dormir, outras dormem ali mesmo na calçada. Meus pés já estão dormentes, machucados. O esgotamento faz parte da rotina.
– Está demorando não é, meu filho? – A voz que fala é cansada, rouca e vem de uma senhora que está atrás de mim. Ela deve ter uns cinquenta anos, mas aparenta ter muito mais.
– Verdade. Espero que ao menos o serviço de quarto seja bom.
Ela sorri. Um sorriso tão sincero que chega a me dar vergonha.
– Primeira vez em um hotel cinco estrelas? – Pergunta curiosa.
Aquilo parece alegrá-la, então decido entrar na brincadeira.
–Sim, e a senhora vem sempre aqui?
– Ah, mas é claro. – Ela levanta os braços. – Aqui é a minha casa. Quando entrarmos, posso te mostrar a decoração. É rústica, como na Itália.
– Você já esteve na Itália, é?
–Sim. – Diz, sem nada acrescentar.
Verdade, eu sei. A rua é repleta de histórias, gritos que não são ouvidos. Olho para aquela senhora, tão pequena e frágil. O que fez com que ela chegasse ali? Antes de pensar em qualquer resposta notei a agitação em minha frente, os pedidos de silêncio e finalmente o som de uma única voz.
Agora o portão está aberto. Uma mulher alta, com pouco mais de trinta anos aparece e tenta explicar à multidão quantos poderiam entrar.
– Eu sei que muitos estão aqui há muito tempo, que esse é o único lugar que vocês têm para comer e dormir, mas, infelizmente, não temos vagas para todos.
Uma voz ao fundo xinga a mulher, mas ela não responde.
– Quantos vão entrar? – Um homem grita impaciente.
– Nós só temos 20 vagas hoje, pela ordem de chegada.
Um pequeno tumulto se inicia, mas logo tem final. A multidão silencia-se. Não há o que fazer. A decepção dura pouco tempo, a raiva é temporária. Afinal todos que estão aqui já passaram por isso inúmeras vezes. Eu permaneci na fila. Pelas minhas contas eu estava entre os últimos mas conseguiria entrar. Todos começam a andar. De forma atenta a mulher conta cada pessoa que passa por ela.
– Um, dois, três, quatro, cinco, seis...
A fila diminui, mas ainda restam alguns e minha esperança vai desaparecendo.
–.... oito, nove, dez...
O falatório fica mais alto e não consigo mais ouvir claramente a contagem.
– ... onze, doze, treze...
E conta até que não haja mais ninguém na minha frente. A mulher me olha e, como se aquelas palavras arranhassem sua garganta, diz:
– Vinte. Você é o último.
Olho para as pessoas que estão atrás de mim, todas com olhos e corpos fartos. Fixo meus olhos naquela senhora com olhar ao longe. Talvez em Roma, Nápoles...
– Desculpe, mas eu só vim acompanhá-la. Queria estar seguro que teria onde dormir.
Pego sua mão tão pequena e enrugada, e a ajudo a subir o pequeno degrau que leva à porta do abrigo.
– Você pode ficar no meu lugar.
Ela não nega, não podia, sabia o quanto precisava disso.
– E você, para onde vai?
– Eu tenho um amigo, eu posso ficar lá. – Aquilo era mentira, ela sabia.
– Nós nos encontramos em Roma, então? – Fala e lhe sorrio verdadeiramente.
Ela sorri de volta e me olha nos olhos. Um sorriso contagiante.
– Veneza. Eu prefiro Veneza.
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Palavras de rua (Degustação)
Non-FictionSinopse :João saiu de casa ainda adolescente. Fugiu sem se despedir e sem muita coisa na mochila. Deixou para trás suas poucas lembranças, mas levou as marcas do passado e dos golpes que ainda doíam. Partiu sem rumo ou direção. Seguiu por ruas e est...