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Daegu, 1935

Ele suava frio, completamente paralisado enquanto a mulher em sua frente — uma senhora de Hanbok gritava firmemente, com desespero.

—NÃO, POR FAVOR! POR FAVOR, NÃO FAÇA ISSO!

E então, ela caía no chão com olhos vidrados, expressão agoniada e roupa ensanguentada.
Bom, ele podia não conhecer realmente aquela senhora — ou reconhecer —, mas se lembrava bem da angústia que sentia toda vez que via a mulher morrer em sua frente nos sonhos que tinha com ela. A dor e o desassossego que lhe habitavam todas as vezes que acabava por ver ela lhe eram estranhamente familiares, como se em algum momento de sua vida, tivesse participado daquele momento.

O sonho caminhava para o mesmo fim; a mulher estava em sua frente esparramada no chão, com os olhos bem abertos e boca derramando sangue, tão carmesim quanto o futon* do pobre rapaz; que assustado como sempre, se levantou do colchão fino em um pulo, afundando as mãos no cabelo bonito e com a respiração descompassada.

"Foi só um sonho, calma"

Com a pressão meio baixa por levantar-se abruptamente, o jovem caminhou — ou cambaleou — até a mesinha no canto do quarto, onde uma bacia de porcelana com água fria sempre era deixada para lavar o seu rosto de manhã. Então, com a mesma afobação na qual havia acordado, jogou a água na sua face para tentar despertar do pesadelo recorrente, que não o deixaria em paz, mesmo no dia mais importante da sua vida.

Ele pegou a toalha e mal secou o rosto, quando ouviu leve batidas no shoji e através dele pôde ver a sombra de uma criada, abaixada, que provavelmente estava levando o seu asagohan*.

—Hiroto-Sama, eu trouxe o seu café! — Antes mesmo de acabar de falar, a coreana pôde ver o rapaz arrastar as portas e colocar somente a cabeça para fora, o que indicava que ele provavelmente estava com o torso despido.

Isso era um tanto quanto comum, mas ela jamais se acostumaria, e como das outras vezes acabaria corada só de imaginar o rapaz menos vestido que o habitual.

—Ajudo em mais alguma coisa, senhor Hiroto? — Perguntou com a cabeça abaixada e os olhos voltados para o engawa de madeira.

—Eu pareço muito nervoso? — Tentou fazer uma expressão séria, que deixou a mulher ainda mais caidinha.

A cara de sono, o bom humor, o cabelo longo e bagunçado, absolutamente tudo nele era perfeito. E ela estava prestes a dizer aquilo, quando ouviu o seu nome ser gritado do fundo da casa.

—AKEMIIIIIIIIIII! — Ela se virou e viu de relance, a governanta da casa caminhar em sua direção, uniformizada e estressada, como era de praxe — O QUE VOCÊ AINDA FAZ AÍ, GAROTA? EU NÃO TE DISSE PARA SE APRESSAR COM OS QUARTOS DOS HÓSPEDES?!

Ele não entendeu muito bem o que Seol vociferava com a pobre coitada, mas riu quando viu a garota se levantar desajeitada e correr da senhora, como se fugisse dela.

—Aish, se eu pego essa garota! — Travou o maxilar e fechou a mão em punho, desacelerando o passo na medida em que chegava na porta do quarto do rapaz.

Hiroto,  era diferente do resto da família. Quer dizer, a irmã do rapaz também era sempre educada com os empregados fossem eles coreanos ou japoneses. Chiyo era sempre cordial, mas mesmo assim, tinha algo com ele, e a maneira com que sempre tentava ser gentil e deixar todo mundo confortável —apesar do ambiente no mínimo hostil — que, fazia todas as criadas se encantarem, os servos se sentirem tranquilos e Seol se retorcer em culpa. Só em pensar que era cúmplice e uma das principais culpadas por todo o sofrimento na vida de um rapaz tão doce, a mulher tinha vontade de se atirar em um poço.

Tudo bem, que aquilo tudo acarretou ótimas consequências para ela que foi nomeada a governanta da casa dos Akio, e passou a receber o dobro do salário; E para o filho dela, que recebeu estudo, e acabou por se tornar o braço direito do patrãozinho,  também o seu melhor amigo, embora seu pai e Seol vivessem ressaltando que aquilo não deveria passar da relação mestre e servo.

—Ohayou*, Oba-chan! — Sorriu quadrado.

Mestre Hiroto, se o seu pai sequer lhe ouvir me chamando de tia... — Resmungou como sempre fazia, sabendo que seria ignorada por ele.

Contudo, mesmo com todas as vantagens, Seol se via constantemente chamando atenção dele, para tentar convencer ao Kim, e a si mesma, que mais cedo ou mais tarde o moreno iria — e deveria —se tornar alguém como o pai.

—Hoje é o grande dia... — Murmurou ansioso, sorrindo para ela — Como vão os preparativos?

—A casa já está devidamente organizada, os quartos dos hóspedes estão sendo aprontados e a comida está sendo providenciada, para que quando eles cheguem tudo esteja plenamente confortável. — Assentiu, empolgado e nervoso — A família deve chegar à tarde, assim eles terão tempo para se instalarem e descansarem antes do casamento, e o restante dos convidados também.

O Kim esfregava as mãos, coberto de ansiedade tentando conter toda a energia que tinha, apesar da noite mal dormida.

Estou muito empolgado, Oba-san, eu esperei esse dia pelos últimos 21 anos —Ela riu, e alegou que aquela era idade dele — Eu sei,  mas é como se eu tivesse nascido pra isso, eu sinto que com esse casamento toda a minha vida vai mudar e vai passar a ter um novo sentido! — Suspirava, pensando na noiva.

—Fico muito feliz com isso, senhor. — Deu um breve sorriso, entregando nas mãos dele, a bandeja de café da manhã que a criada havia trazido — Agora deve se apressar e comer antes que esfrie.

Eu odeio comida fria. — Fez uma careta e pegou a bandeja.

—Sei disso. Assim que terminar, vá ao encontro de seu pai. Ele lhe espera no escritório. — Fez uma breve reverência antes de seguir o seu caminho, deixando Hiroto sozinho com todo o seu surto.

Agora ele estava curioso, sabia que todas as vezes em que o pai lhe esperava sozinho no escritório, algo de muito significativo estava para acontecer, fosse isso bom ou ruim. Vasculhando as suas vagas memórias, o rapaz se lembrou bem da vez em que visitou o cômodo intrigante onde Mitsuo passava a maioria dos dias, e acabou conhecendo sua noiva.

Ele devia ter cerca de dez ou onze anos — estranhamente, todas as suas primeiras lembranças ocorriam por volta dessa época — quando foi comunicado que conheceria a sua futura esposa. É claro que para uma criança daquela idade, não era muito empolgante saber que a mulher com quem passaria o resto de seus dias, era uma fulana de tal, filha de um ciclano qualquer, que ele havia visto uma única vez. Principalmente, quando  tinha plena consciência que o casamento dos pais não era lá um mar de rosas.

Contudo, Mitsuo e seu poder de convencimento, logo começaram a trabalhar na mente do garoto, para que ele deixasse de ver o casamento como uma instituição falida, e acreditasse que aquela era a única maneira de tornar-se um homem de respeito.

Então, pouco a pouco e com muita manipulação da parte do pai, o pensamento do pequeno Kim foi mudando, o casamento foi deixando de ser um fardo para se tornar um sonho, e quando viu Mina pela primeira vez a expectativa apenas aumentou. Ela era linda — relativamente tímida —, e muito doce, além de uma exímia pianista.

Foram essas as impressões que ficaram para o coreano nos 5 breves encontros que tiveram, junto com a certeza de que se esforçaria para que ela fosse feliz ao seu lado.

Não que amasse profundamente a garota, ou se encontrasse perdidamente apaixonado por ela. Ele só queria poder fazê-la feliz, e ter a certeza de que teriam uma boa convivência quando se tornassem um casal.

Akio Hiroto | VminOnde histórias criam vida. Descubra agora