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Após um dia, eu estava insuportável.

Meu corpo ainda não havia congelado por completo. Uma fina camada de gelo cobria meus dedos das mãos e dos pés e a ponta do meu nariz, deixando-os duros feito pedra. Talvez eu ainda não tivesse virado um bloco de gelo porque Bertha havia me instalado em frente a lareira. Tomei sopas e chás escaldantes, de forma que já não sentia mais o sabor de quase nada, pois minha língua estava queimada feito as lenhas da lareira.

Mas o pior não era o que acontecia por fora, e sim o que acontecia por dentro. Eu não sentia absolutamente nada. Não temia a morte que se aproximava cada vez mais, não me irritava com Bertha quase me enfiando dentro da lareira, nem com os olhares curiosos e indiscretos dos outros funcionários, cochichando pelos cantos "será que ela vai virar uma estátua de gelo?".

Não me senti diminuída e nem rebaixada à condição de bicho quando ouvi Harold e Bertha conversando ao anoitecer, a poucos passos de onde eu estava, sentada no chão perto da lareira e enrolada em dezenas de cobertores.

— Poderíamos largá-la na Rua das Neves — Bertha resmungou para o marido, como se estivessem apenas discutindo o preço do feno. — Se a matarmos e jogarmos no rio, alguém pode ver e nos dedurar para o rei. Mas a gente pode deixá-la na Rua, por causa da lenda do Senhor de Gelo. Você sabe que até mesmo aquele rei careca se caga de medo do Senhor do Gelo.

— É capaz do Senhor do Gelo congelar nossos rabos por largarmos aquela porcaria na rua dele.

Os dois riram histericamente por minutos, olhando com divertimento para mim. Na época, eu não reagi — não tinha vontade de reagir —. Não me senti mal e nem chateada por saber que eu não valia nem mesmo a pena daquelas pessoas. Hoje, lembrar disso me machuca e me faz chorar em alguns dias, mas na época não me causou nada.

A Rua das Neves era uma pequena estrada que acabava na entrada de um bosque escuro e repleto de lobos, no topo de um morro. Era um lugar gélido em qualquer época do ano, até mesmo no verão. As folhas das árvores nunca cresciam, o chão nunca deixava de ser nevado e lamacento, e nada dava certo perto ali. Cabanas desmoronavam, plantações apodreciam e rebanhos morriam. Segundo a lenda, a Rua Nevada pertencia ao Senhor do Gelo — um feérico imortal portador de todo o poder envolvendo o frio —. As lendas diziam que era ele quem controlava o inverno e seus elementos, e que, no passado, Elseia havia provocado a sua ira, e que era por isso que a cidade estava fadada ao frio eterno.

Quando uma pessoa era acertada por um raio dos Cavaleiros — que seriam os serviçais do Senhor do Gelo — ela deveria ser deixada sozinha ali na Rua das Neves. Se não fosse comida por um lobo, congelada pelo frio, saqueada por ladrões e o Senhor do Gelo a considerasse digna, ele iria curá-la e ela nunca mais seria acertada por um raio.

Era óbvio que aquilo nunca havia dado certo.

Eu via a lenda mais como uma desculpa para abandonar a pessoa nos braços da morte e colocar a culpa no místico. Contudo, se os Cavaleiros eram de verdade, o Senhor do Gelo também tinha o direito de existir.

***

Na manhã seguinte, assim que o dia clareou, eu já estava na carroça de Harold, subindo as colinas que levavam até a Rua da Neve. Em nenhum momento ele parecia culpado ou apreensivo pela decisão que estava tomando.

Assim que desci da carroça, usando apenas um vestido de lã velho — eles queriam que eu eu morresse ali, garantindo que meu corpo não tivesse nenhuma proteção do frio —, sentei-me em um tronco caído no limite entre a rua e as árvores sem folhas e fiquei observando a escuridão profunda do bosque, ouvindo os lobos uivando e as corujas piando. Ouvi quando a carroça foi embora, os chicotes estalando no lombo do cavalo para que ele corresse o mais rápido possível.

A fúria e o geloOnde histórias criam vida. Descubra agora