4 (parte dois)

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Eu estava tendo um sonho bom, onde comia uma torta de maçã recém saída do forno enquanto um filhote de gato ronronava aos meus pés. Sempre fora meu sonho ter um gato de estimação, e era somente um sonho, mas também era um desejo tão familiar, tão simples, que parecia extremamente real. Conseguia sentir o cheiro de maçã e canela, a textura da pelagem macia...

Alguém me acordou quando eu ia morder a torta.

Um homem que aparentava ter 60 anos me encarava com um rosto simpático. Ele tinha orelhas pontudas, indicando sua espécie feérica, e usava uma túnica branca. Parecia um...

— Sou o curandeiro Malik, muito prazer em conhecê-la — ele fez uma reverência curta e puxou a cadeira da penteadeira para perto da cama, sentando-se.

O sonho estava sendo tão vivo. Acordar dentro daquele vazio me enfureceu.

— Eu não estou doente, não preciso de um curandeiro — disparei, me irritando com a serenidade em seu rosto.

— Se não estivesse doente, não teria reagido positivamente ao fitoterápico que lhe dei enquanto dormia. Teve bons sonhos? — Mas que porra... — Isto — ele estendeu um pote achatado para mim; não me mexi para pega-ló. — é um creme com ingredientes calmantes. Passe no pescoço sempre que precisar.

— Eu não estou estressada para precisar de calmante.

Ele ergueu as sobrancelhas grisalhas e riu.

— A senhorita está falando entre os dentes, cerrando-os com tanta força que seu maxilar está saltado, e há uma veia pulsando em seu pescoço. Isso me parece estresse.

Senti um buraco se abrir no meu peito, e era como se ácido escorresse por dentro dele. Eu não estava sentido nada, nada até que ele passasse aquele creme em mim, sem a minha permissão. E agora eu estava sentindo tudo de novo. Sentia raiva dele por ter passado aquilo em mim, raiva do Senhor do Gelo — que provavelmente deveria ter sido quem o chamara. Sentia tanta raiva que parecia que não havia ar suficiente no quarto para abastecer minha respiração.

— Saia daqui agora — levantei e marchei até a porta, abrindo-a com força para que a maçaneta batesse contra a parede. Eu queria que o Senhor do Gelo ouvisse aquilo. Queria macular a sua casa perfeita, deixando a marca da maçaneta gravada contra a parede. — E leve os seus calmantes com você!

Ele riu baixinho mais uma vez e se levantou, deixando os frascos sobre a minha cama e se aproximando de mim. Parecia tão calmo, o rosto sereno, as mãos para trás do corpo, o tipo de paz que parecia ser inacessível, e isso me irritou ainda mais. Era injusto que ele tivesse acesso a tanta calma enquanto eu queimava de ódio. Dois sentimentos tão conflitantes não deveriam existir no mesmo lugar.

— Os remédios ajudaram Aiden a conseguir retirar todo o gelo da sua mente e...

— Quem disse que eu queria que isso acontecesse? — minha voz começou a embargar por causa do choro que espreitava a superfície feito um monstro marinho, pronto para dar o golpe final. Eu odiava me sentir fraca daquele jeito, sem nunca conseguir discutir sem chorar, e sentir-me fraca agora só piorava tudo, porque era mais um dos muitos sentimentos que haviam sido congelados e, agora, contra a minha vontade, tinham sido reaquecidos e queimavam cada parte de mim.

Deixei o curandeiro para trás e me tranquei no banheiro do quarto. Abri a torneira e joguei água no pescoço, esfregando-o com uma bucha que estava em cima da pia. Nenhum resquício daquele creme ficaria em mim, nenhum. Esfreguei, esfreguei e esfreguei. Esfreguei até minha pele ficar vermelha, até pontos roxos aparecerem, até gotinhas de sangue emergirem. Esfreguei até a bucha se desfazer em duas.

A fúria e o geloOnde histórias criam vida. Descubra agora