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Como moradora de Enseia, sabia diversos sintomas da hipotermia: perda do controle dos membros superiores e inferiores, a respiração ficava comprometida, podendo gerar desmaios. E havia a perda de sentidos e confusão mental.

Quando despertei, ainda com os olhos fechados, acreditei que fora isso que acontecera. Eu havia dormido muito mal, então poderia ter caído de sono durante o trabalho, ficando exposta ao frio e ter sonhado com tudo aquilo — os raios, o cavaleiro e o Senhor do Gelo —. Mas, assim que abri os olhos, constatei que tudo era real.

O quarto onde eu estava era enorme e muito quente, como imaginava ser o clima nas cidades próximas aos trópicos. As paredes eram de uma madeira clara, tapetes felpudos e brancos cobriam o chão. Eu estava deitada em uma cama de casal que poderia comportar umas três pessoas, e quatro cobertas de lã estavam sobre o meu corpo.

Com esforço, sai debaixo delas e notei que o meu vestido velho, frio e úmido fora substituído por um pijama de um tecido brilhante que deslizava sobre a pele. Quando fiquei de pé, pensei que seria atingida pelo frio, mas tanto o ar como o piso estavam aquecidos. Nunca, nem em mil anos, teria imaginado que a Cidade Nevada era quente.

Caminhei até uma penteadeira, onde havia algumas roupas dobradas. Eu teria deixado-as de lado se não fosse por um bilhete sobre a pilha com a frase "Para a garota que quase virou picolé". Eu não sabia com que frequência o Senhor do Gelo trazia garotas para a Cidade Nevada, mas imaginei que aquilo era pra mim.

Uma blusa de tricô azul-claro, uma calça branca forrada com lã, um cachecol azul-escuro e roupas íntimas. Passei algum tempo apenas tocando o tecido das peças; era tão macio e confortável, sem ser duro e áspero como os que eu estava acostumada a usar. Conferi se a porta do quarto estava trancada e me troquei, encontrando um par de coturnos que couberam perfeitamente em meus pés. Havia um espelho de corpo inteiro no quarto, e usei-o para verificar se tudo estava no lugar.

Manchas vermelhas cobriam meu pescoço e mãos: queimaduras de frio. As maçãs do meu rosto também estavam queimadas, dando a impressão de que eu havia levado dois tapas na cara. Para finalizar, parecia que eu tinha esfregado meu lábios com uma lixa de pé e meu cabelo não via um pente há semanas.

Eu não me senti triste. Não me senti incomodada com os machucados, feia com o cabelo cheio de nós.

Eu não senti absolutamente nada.

Agora que eu não estava mais com o meu corpo congelando, quase conseguia me sentir em paz com o novo coração de gelo. Não sentir nada era melhor do que sentir somente coisas ruins.

***

Passei a manhã inteira agindo mecanicamente. Eu estava hospedada na casa do próprio Senhor do Gelo, cujo nome descobri ser Aiden. Era uma luxuosa construção de dois andares, feita de madeira, aquecida, de forma que ninguém ali usava casacos grossos. Quando o café da manhã foi servido, descobri qual era o terceiro elemento que compunha o aroma de Aiden: baunilha. Ele cheirava a frio, pinho e baunilha. A cozinheira havia informado que ele adorava colocar a essência da flor em absolutamente tudo que consumia — bolos, chás, frutas.

Milari, Kyara e Eisa — a cozinheira e as duas ajudantes, respectivamente — eram moças extremamente agradáveis. Me trataram com gentileza desde que me viram saindo do quarto,  perguntando o que eu desejava para o desjejum, servindo-me como se eu fosse uma lady. Explicaram que somente Aiden e sua prima moravam na casa, no segundo andar, e que o primeiro era usado como sala de recepção e quarto de hóspedes quando havia grandes eventos.
— O lorde Aiden estará em casa até a hora do almoço, e disse que gostaria que a senhorita almoçasse com ele — Eisa disse forçando um sorriso enquanto eu empurrava um pedaço do bolo de chocolate para dentro. Estava ótimo, mas eu não sentia nenhuma vontade de comer. Apenas assenti.

A fúria e o geloOnde histórias criam vida. Descubra agora