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Eu estava agoniado.  Aquela necessidade que vinha de repente, incontrolável, estava de volta.  Era difícil agir, andar, falar, interagir com outras pessoas quando, dentro de mim, eu parecia prestes a explodir.  Algo em minha mente estalava. Eu parecia sentir o sangue bombando nas veias, quente. O desejo subia voraz, quase chegando ao desespero.

Até que eu tinha conseguido me controlar um bom tempo daquela vez. Algumas semanas. Mas agora se tornava necessário  acalmar  aquela  fome interior para recuperar meu equilíbrio. Se não o fizesse, me descontrolava e poderia deixar  uma  pista ou até uma ponta solta.
Não. Precisava agir logo e recuperar a minha paz, como um animal que só sossega depois de estar bem alimentado.

Tinha sido assim a minha vida inteira. Sempre senti como se eu fosse dois, um lado luz, um lado sombra. A luz, todo mundo via. Eu fazia questão de mostrar. Despertava admirações, desejos, amizades, amor. A sombra era só minha. E eu apenas mostrava aos meus escolhidos.

No início surgia em momentos de descontrole. Eu ia para o mato caçar e torturar pequenos animais. Comecei com passarinhos. Achava interessante matá-los aos poucos, observando atentamente enquanto lutavam até não ter mais saída. Depois passei a pegar gatos e cachorros de vizinhos. Não era difícil. Os animais pareciam ter um carinho especial por mim e me seguiam sem problema.Sempre fui carinhoso com eles.  Todo mundo achava que eu os adorava. Lembro de uma vizinha que disse uma vez que poderia conhecer a alma de uma pessoa pelo modo como tratava e se relacionava com os bichos. E que eu tinha uma alma boa. Pois é,concordo com ela.

O problema era que minha alma boa também era curiosa e aquele desejo, quando vinha, consumia tudo. Não sou nenhum louco ou psicopata. Sei o que faço. Tenho consciência de tudo e sinto remorso. No início chorei muito ao ver o resultado final dos meus atos, quando segurava o corpinho ainda quente e sem vida em minhas mãos. Sempre dizia a mim mesmo que não ia fazer mais,  porém aquilo começava a crescer de novo dentro de mim e eu sabia que não podia evitar. Era quase um chamado. Ou uma compulsão. E  um segredo só meu.

A primeira vez que matei uma pessoa foi sem querer. Ela me tirou do sério em uma transa. Eu ainda era um rapaz muito jovem e ela quis rir de mim. Quando vi, tinha apertado tanto seu pescoço que a estrangulei. Por sorte, foi num lugar distante de tudo, no meio do mato, à beira de um pequeno lago deserto. Eu ia lá para pescar ou quando ninguém sentia a minha falta. Tive que dar um jeito.
Arrumei umas cordas, arrastei-a até um ponto mais alto que dava numa ribanceira para o lago, onde era bem fundo. Amarrei-a com diversas pedras e a empurrei lá de cima.

Durante muito tempo fiquei com medo que não fosse
suficiente e o corpo subisse. Chorei, me senti culpado, quase me entreguei. Eu tinha ido longe demais daquela vez matando uma pessoa. Estava chocado e fiquei assim um tempo, enquanto a procuravam pela cidade. Mas nunca foi encontrada e me acalmei.

Pude ficar meses sem precisar de mais nada daquela
sensação, nem com animais. No entanto, a compulsão voltou de repente. O  desejo, o desespero. Voltei aos animais, mas não era mais o bastante. Foi quando entendi que não podia parar. E passei a planejar. Desenvolvi até uma estratégia, que acabou me trazendo paz. Eu poderia usar aquele instinto faminto para o bem. Livrar a sociedade de quem não era bem visto por ela.

Quem sentiria falta de alguém assim? Um mendigo, um andarilho, um jovem de rua. Era só saber escolher. E sumir com o corpo.
Testei algumas vezes. E nunca fui pego. Entendi que eu poderia controlar aquele desejo e seguir normalmente com a minha vida. Foi o que fiz. Usei minha luz e ela sempre escondeu minha escuridão.

Tudo parecia perfeito. Até aquele garoto aparecer. Era só mais um. Mas que me chamou atenção. O cara da cafeteria e que frequentava o orfanato. Sua beleza e seu jeito receptivo e terno,  encantava a todos.

Obrigados A Casar {VHope}Onde histórias criam vida. Descubra agora