O Reflexo de Ninguém

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Estou a todo o tempo um passo atrás de mim mesmo. Não soube dizer até hoje que hediondo pecado pratiquei, mas desde aquela noite penosa aprouve à Deus me castigar retirando dos meus olhos a visão do meu rosto.

O relato daquela noite perversa que vos escrevo como um último suspiro, é resultado de acusação tardia de minha alma, após todo o sofrimento, de que não há mais esperança para mim. Deixo registrado nessas páginas a desesperança que cresceu e esmagou-me aos poucos, sem alternativa alguma sucumbi ao pesadelo, e estas são minhas últimas palavras, farei minha última oração e irei para sempre. Irei para lá.

Na noite em que o nosso senhor morreu, na páscoa de nossos dias, parti o pão, dei graças e disse: "Comamos e lembremo-nos", para mim mesmo e todo o aposento solitário em que me encontrava. Esculturas de santos que de seus nomes pouco me recordo, me acompanhavam. Há tempos não rezava, nestes últimos dias me bastava sentar-me na confortável poltrona de veludo roxo diante das imagens na estante, entre livros desarrumados, e conversar face a face, diretamente com eles, ou simplesmente observá-los, na fé de que a esperança desnutrida em mim recebesse alimento. Mas a oração naquela noite era inegociável, ainda, afinal, era o início das comemorações de páscoa. Comi os pães devagar, remoendo como um cavalo remói a grama seca, observando as horas correrem, além disso o pão jazia na mesa há mais de uma semana, já estava muito duro e prestes a ser tomado pelo mofo. Um velho vinho melhoraria a ceia medíocre que tivera, não precisava ser bom, apenas tornar o corpo de cristo digerível naquela noite.

Olhei através da janela buscando ver o letreiro do mercado ainda aceso, na esperança de que ainda estivesse aberto. E estava. Para lá da janela as calçadas estavam movimentadas, famílias que dirigiam-se à igreja matriz para a celebração de santíssimo dia, por todo o trajeto ouvia-se o comemorar da vitória do único homem que venceu o sono eterno. Conversavam excessivamente frente ao monumento sagrado, entoavam canções pascoais, e a cada minuto que passava observando mais pessoas juntavam-se à aglomeração; vento encarregou-se de trazer até mim todos esses ecos radiantes. Decidi, então, levantar-me da poltrona que me abraçava acolhedora e ir comprar uma garrafa de vinho barato.

Todavia, digo-te, não sentia-me naturalmente seguro ou confortável, algo naquela noite medonha me fazia recuar, feito um gato em perigo que eriça-se instintivamente frente a um poderoso cão. Mas segui.

Com profunda indignação pergunto-me: Quão caótico é o arquiteto que ordenou aquela noite? Soprou em minha mente obscuridade imperceptível, e antes que percebesse já habitavam as esquinas dos meus pensamentos subconscientes. Subverteu meu pensar, e sem que eu imprimisse qualquer vontade oposta levou-me pela mão até tão medonho cavalheiro. Digo-te isso porquê eu certamente não me esqueceria do vinho para cear na sexta-feira santa, somente um intento maligno me faria olvidar. Fui obrigado a sair em meio a fruição sinistra daquelas ruas que me arrepiam ao simples ato de rememorar. Uma canção dissonante, inaudível, orquestrava os elementos da noite, regendo-os de maneira profundamente sórdida, e me amedrontava conseguir vê-los, nota por nota.

A lua, que em dias comuns lançava um banho perolado sobre o véu noturno, era a musa da noite, a estrela aguardada, passou a dispersar raios pestilentos, luzes de mal agouro. Porém, os raios brancos que lançava não eram pragas ao vento pela morte de Deus, não eram lamentos em memória de seu Criador, e sim luzia pálida no céu sem estrelas, como uma luz de vela que centelha no meio da escuridão, invocando algo terrível das profundezas do céu. Por sentir o espanto noturno nas entranhas, eu temi, mas não hesitei em levantar-me da poltrona e destrancar as minhas portas. Creio que o destino é implacável, e naquela noite ele fez a necessidade, guiou-me pela mão, e eu não pude, nem poderia, evitar o sofrimento que hoje me atormenta.

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