Iracema

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Quando terminamos nossa aula, eu tinha certeza: Iracema estava interessada em mim. É claro que eu deveria ignorar isso e me concentrar em ensinar e só, sei muito bem disso, não preciso que você me dê lição de moral. Acontece que não há quem possa dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração. Quem irá dizer? Palavras de Manfredini.

Pensei comigo então, outros sinais virão. Não posso dar um passo em falso neste jogo, afinal a minha posição era muito delicada. E a confirmação veio. Almoçamos todos juntos, na sexta, quando a semana se despedia com chave de ouro. Na hora da foto do grupo todo, Iracema coloca a mão na minha cintura. Um gesto que, ainda que prolongado, havia sido discreto e preciso. Eu sabia, no contexto que vivia, no mundo que habitava, que mulher alguma buscaria aquela intimidade com um homem, se não estivesse minimamente interessada. Especialmente, sendo casada e mãe de dois filhos.

O terceiro sinal veio em meio a todos no grupo. Eu já sabia, porque estava escrito em seus olhos, que Iracema não tinha mais em sua vida a chama da paixão. Era muito tempo de casada e muita dedicação aos filhos, para que ela pudesse, sendo uma mulher de classe alta, também desfrutar de uma relação cheia de desejo e sexo. Não. O cara era metido com petróleo, trabalhava muito e não tinha tempo para coisas mundanas. Vivia encerrado em seu umbigo e pagava para ser deixado em paz. Era o que eu imaginava e ganhou muito força, quando ela nos disse, num encontro

- Somos como irmãos. Não existe paixão.

Todos encararam o fato de que não havia o que dizer e apenas um bravo, ou uma brava, cortaria o excruciante silêncio com uma frase salvadora, e foi assim que Monique jogou uma bomba que fez todo mundo explodir em gargalhadas.

- É por isso que meus consolo tão tudo na gaveta, com bateria no talo.

Iracema começou a cochichar algo com ela e riram ainda mais. Eu percebi que para Iracema não era uma vergonha falar daquilo. Ao contrário, ela havia preparado um judas em casa e nós havia trazido, para que o malhássemos ali. Para que destruíssemos sua integridade e lhe proporcionássemos uma catarsis necessária. Ela se aproximou de mim, ao final, mas não me tocou. Apenas raspou o braço, quando pegou sua bolsa, atrás de mim. Despediu-se, sorrindo, dizendo que nos falaríamos pelo Whatsapp no fim de semana.

Eu sabia que aquela mulher era uma bomba de orgasmo acumulado. A coisa concentrada ali era capaz de parir uma galáxia. Minha cabeça começou a se encher de uma voz conhecida.

- Vai lá, cara. Você sabe que não tem nada demais e que só o que te refreia é a educação cristã que teve, quando era criança. Ela é uma mulher e está precisando gozar. Você é um homem e, segundo a orientação sexual dela, pode ser o artífice deste ato. A pergunta é, por que merda você vai ficar enrolando?

E então brotavam imagens de cenas nossas, jamais protagonizadas antes, estreando na minha cabeça como uma orientação. Eu a tomava por trás e raspava meu nariz em sua nuca, roçando meus lábios na penugem sobre a pele sensível. Os olhos dela se fechando. A boca entreabrindo. O cheiro da pele inundando meus pulmões. Minhas narinas dilatadas. Ela jogando o quadril pra trás e suspirando. Meu pai. Guarda meu juízo. Amém.

Saí pra beber. Enchi a cara e fiquei daquele jeito, caminhando nas nuvens, com a boca amortecida. Dei de cara com a sentença do juiz. A família de Iracema gozava de um dia feliz diante do shopping, onde um grupo de cantores de doo wop se apresentava. Não deixei que ela me disse. Tirei um cigarro do bolso, um dos dois que sempre compro, quando saio pra beber. Fumei, olhando a família Iracema se divertindo. Ela o abraçou e ele ficou lá, duro, olhando pro grupo, enquanto os filhos tiravam fotos e faziam vídeos.

Eu tentei me enganar, mas sabia que estava morto. Quando morre, a gente sente. Iracema e eu acabamos, um dia, numa celebração da escola, pro encerramento das atividades do ano. Ela estava linda e eu estava na régua. O pai sabe dar um tapa no visu e diminuir o abismo que há entre o ordinário e o maravilhoso. Charme transbordando, fazendo beleza virar detalhe. Ela veio. Não fiz força. Ela se jogou, igual quem faz base jump. Eu segurei e a gente se pegou ali a noite toda. Nós todos. Ela, eu e os fantasmas.

Fomos pra um motel. O marido dela me encarava, branco, translúcido. Seus filhos também. Eles não diziam nada, mas faziam barulhos estranhos. Quando nos agarrávamos, quando nossas línguas digladiavam nas bocas, eu sentia os olhares pesando sobre a gente. Brochei. Ela quis tentar, mas eu não podia.

- Desculpe.
- Eu sou feia?
- Não. Se fosse, não teríamos chegado até aqui. Não fui sincero. Faz um tempo, encontrei você e sua família na rua. Eu gostei deles. Seu marido. Seus filhos. Eu... Você entende? Eu gostei deles. Eu não posso fazer isso com a mãe deles.

Ela começou a se arrumar. Não dizia nada. Eu não sabia o que dizer também. Mas eu precisava falar alguma coisa que tornasse aquilo menos esquisito, se é que era possível.

- Desculpa. Eu não queria que fosse assim.
- Pois é, nem eu. Mais uma vez, o Roberto conseguiu. Minha mãe, meu pai, meu irmão, meus filhos e agora até você. Até você. Como é possível? É demais pra mim. Desculpa, eu vou embora.
- Por que não conversamos mais?
- Porque amigos eu tenho aos montes. Com licença.

E ela saiu. Não nos vimos mais, até o dia em que nos cruzamos no posto de gasolina. Ela abastecia, quando cheguei. Acabamos nos esbarrando na loja de conveniência e conversamos. Ela estava indo para o Espírito Santo. Talvez, Minas Gerais. Ela ainda não tinha decidido.

- Vou ver no caminho. Quero aproveitar um pouco.
- E as crianças?
- Estão com os avós. Vão ficar lá durante o verão. Já fizeram tantos amigos, que nem se lembram de me mandar uma mensagem.
- Crianças são assim mesmo.
- Pois é. Bom, foi um prazer te reencontrar. A gente se vê por aí.

Ela me deu um beijo no rosto e saiu. Eu fui andando para o caixa, pensando naquela série de eventos, desde o início do curso, o surgimento de Iracema em minha vida e sua repentina saída. Uma coisa brusca e dolorida. Minha cabeça estava nas nuvens. Então, o cara no caixa, que conversava com uma panfleteira, cutucou meu braço.

- Tu acha que foi político?
- O quê?
- O assassinato do Roberto Paranhos. Acharam o corpo dele em Ilha Grande, dentro do barco dele. Mó doidera.

EROTISMOS CONTADOS IIOnde histórias criam vida. Descubra agora