Sobre rosas e munição

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Imagine uma casa branca à beira do Mediterrâneo, em algum canto esquecido da Espanha, onde as paredes estão descascando de tanto sal, sol e anos que ninguém quer contar. Agora, imagine duas mulheres dentro dessa casa. Ana, a russa. Leyla, a curda. As duas ex-enfermeiras na Segunda Guerra Mundial. A ironia é que depois de tantos corpos costurados, tantos cortes que tentaram fechar, ainda assim, é elas que estão quebradas. E elas sabem disso. O mundo lá fora pode ter se acalmado, mas dentro, os bombardeios ainda ecoam.

Primeiro, a guerra. Sim, porque isso sempre tem que começar pela guerra. Se você pensa que a história começa na Espanha, você não entende como essas coisas funcionam. Ninguém apenas vive em paz à beira-mar porque quer. Antes, houve sangue. Não delas, claro, mas o bastante para tingir as mãos de quem tentava salvar. "Todo o imenso oceano de Netuno poderá lavar o sangue. Das minhas mãos? Não, estas mãos tingirão os mares infinitos de vermelho, fazendo o verde se tornar rubro". Uma sentença.

Você está vendo as duas, não está? Ana, sempre a disciplinada, a controlada, a que nunca derruba uma lágrima, nem quando a dor atravessa o corpo de outro ser humano. A que sabe exatamente onde colocar os pontos, o bisturi, a mão firme. E Leyla. Ah, Leyla é a bagunça bonita. O tipo de pessoa que, mesmo com o rosto coberto de sangue seco e sujeira, consegue rir de uma piada que ninguém contou, mas que passou pela cabeça, na forma de um pensamento. Porque rir é o que resta quando tudo desmorona ao seu redor. Quase sempre era Leyla que buscava o rosto da outra enfermeira, no meio de tantos, e topava com aquela cara compenetrada, muito séria, fazendo seu trabalho manual. Uma perna amputada. O médico chamou a mulher em um canto e expôs seu plano. Ele precisava que ela fizesse uma sutura perfeita, porque então não teriam que cauterizar uma área muito grande e o risco seria menor. E ela fez exatamente o que tinha de fazer, com o excesso de pele deixado pelo médico, na amputação do membro. A sutura ficou uma joia e a área cauterizada não oferecia perigo de infecção. 

Você pensa que foi a dor que as uniu. Mas não foi, você está completamente enganado. Foi a guerra, essa desgraçada de uniforme invisível. A guerra não te oferece escolhas, apenas te arranca até o último pedaço de esperança. Então, tudo o que você quer é segurar a mão de alguém. Qualquer mão serve. Ana agarra sua sutura, como se pudesse conter a ferida que a guerra abriu dentro dela. Leyla agarra seu cigarro com mãos trêmulas, tragando ansiosamente como se cada fumaça pudesse afastar os horrores que testemunhou. Elas agarram o riso, o que sobrou dele, rindo para esquecer os gritos e as explosões que ecoam em suas mentes. A guerra deixa marcas, não apenas em cicatrizes físicas, mas com uma conexão profunda e sombria que só aqueles que enfrentam o terror podem entender. É preciso ter muito cuidado, ou então você segue o fluxo das coisas ao seu redor e acaba explodindo também.  

E você sabe o que acontece quando duas pessoas dividem esse tipo de inferno, não sabe? Elas se olham no meio do caos, entre o cheiro de carne queimada e a trilha sonora de ossos sendo quebrados. Não é amor à primeira vista, porque não existe 'primeira vista' numa guerra. A guerra te rouba isso também. Você só percebe quando já está ferrado, quando já ultrapassou o ponto em que é possível voltar. Elas estão ferradas. Mais do que isso, estão costuradas por cicatrizes que não aparecem no corpo, mas estão ali, sob a pele, no olhar vazio, na risada que sai nervosa. Não tem nada a ver com escárnio, mas com não saber se situar. Rir, como consequência de um naufrágio, em meio a ondas do tamanho de prédios e baleias maiores que submarinos de guerra. 

É um laço que você não pode cortar. Algo além de amor, além de ódio. Uma fusão forjada no meio da lama, entre explosões e gritos que reverberam como música de fundo. Elas não se escolheram. Ninguém escolhe. É como se a guerra tivesse decidido por elas, empurrando-as uma para a outra, até que se tornassem um reflexo distorcido da mesma coisa. E quando você chega nesse ponto, não tem mais pra onde correr. Você está preso àquela pessoa como se fossem sobreviventes do mesmo barco furado, flutuando em destroços de esperança e desespero. Porque depois que você vê o pior da humanidade, depois que você sente a morte ao seu lado todos os dias, qualquer vínculo, qualquer toque, é tudo o que você tem. A guerra ferra você de maneiras que nem consegue entender, e o pior é que, no fundo, você nem se importa mais.

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⏰ Última atualização: Oct 02 ⏰

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