Agora nós teríamos problemas.

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Após as orientações de Lily, tentamos nos misturar entre as fadas e curti o baile da melhor maneira possível. Notei que, assim como eu, nenhum dos outros caçadores estavam armados. Ela era esperta demais para permitir isso. Rezo ao anjo que somente nosso treinamento fosse suficiente em um caso extremo.
Olhares nos cercavam por todos os cantos, encarando nossas runas e nos julgando como se fossemos demônios em suas terras. Apesar da rainha garantir que éramos convidados de sua corte, ela não poderia deter o sentimento de ódio que as fadas alimentavam por nós. Gostaria de dizer que elas traíram os acordos e foram as verdadeiras vilãs da história, mas ao criar a Paz fria, a Clave condenou uma raça inteira, não somente aqueles que escolheram se juntar ao meu irmão e ao seu exército na Guerra Maligna. As palavras de Seelie sobre minha lealdade para com o Conclave surgem em minha mente e eu engulo em seco. Nunca fui a Nephilim mais exemplar da minha geração, Clary com toda a certeza era uma caçadora melhor aos olhos da Clave. A Morgenstern boa. A irmã com sangue de anjo. Eu nunca fui nem um ou outro. Crescer a sombra de Sebastian e Valentine teve seu custo, havia uma macha de escuridão em meu coração, como se a maldade fosse herdada pelos gêmeos, vindo diretamente do nosso pai. Eu a sentia todos os dias, se esgueirando dentro de mim, esperando que eu fosse vencida pelo sangue demoníaco para que pudesse se expandir assim como tinha feito com meu irmão. Apesar desse fato, honrei as runas espalhadas pelo meu corpo, fugi para sobreviver, me escondi para não ser julgada como uma traidora, rodei o mundo até cair as portas do instituto de NY. Poderiam me acusar de inúmeros crimes, mas nunca de não ser uma caçadora de sombras. Eu seguia a lei, apesar de não concordar com ela em 90% dos casos. A rainha estava errada sobre mim, eu escolheria a Clave, apesar de meu coração sempre dizer o contrário. Sed lex, dura lex. A lei é dura, mas é a lei.
A presença repentina de uma fada diante de mim me tira dos devaneios. Ele tinha olhos claros, algo que se misturavam entre o castanho e o mel, seus cabelos eram castanhos e sua pele morena, algo extremamente raro entre as fadas. Suas roupas eram finas e elegantes, algo apropriado para um nobre. O homem se curva em uma singela reverência e eu me pego levantando as sobrancelhas, surpresa com sua ação.
- Milady, poderia me dar o prazer dessa dança? - ele pergunta.
Kit toma a minha mão, entrelaçando os dedos nos meus de forma decidida.
- Ela já está acompanhada - responde como a entonaçao que somente um Herondale teria.
Vejo o rosto do homem ser tomado pelo sentimento de frustração e antes que ele diga algo, me adianto a falar.
- Não seja rude, Kit, é apenas uma dança - falo largando sua mão e estendendo a minha para o cavaleiro.
Olho para o caçador e espero que ele leia em meus olhos o que eu estava tentando dizer a ele: "Lembre-se do que Lily disse, não podíamos nos dar o luxo de irritar uma fada. Não hoje". O homem toma minha mão na sua e me conduz até o local onde outros casais dançavam ao som suave de um violoncelo, uma de suas mãos segura a minha e a outra pousa em minha cintura. Não é difícil acompanhar seu ritmo, graças às aulas de música dadas por meu pai, eu sabia o básico para uma valsa decente.
- Não sabe o quanto é reconfortante não ser o único de outra raça por aqui.
- O que? - pergunto enquanto giramos sobre o salão. Encaro o rosto do homem e então percebo. Agora de perto, consigo ver o formato de suas orelhas.
- Você não é uma fada.
- Não, eu sou um feiticeiro - um sorriso se abre em seus lábios rosados e eu franzo o cenho- Desculpe por todo aquele lance de "Milady", achei que se pensasse que eu fosse uma fada, não ousaria recusar meu pedido.
- Bom, deu certo - digo- Então, o que faz em uma festa das fadas?
- Sou um velho amigo da rainha.
- A rainha não tem amigos - falo em voz baixa para que somente ele escute - Somente pessoas que ela usa de acordo com seu interesse.
- Tem razão - o feiticeiro confirma com um balançar de cabeça - Sou alguém que ela gosta de ter por perto.
- E o que você ganha com isso? - questiono.
- Entretenimento - ele sorri novamente - Pode imaginar o quão tedioso pode ser a vida de um cara que já viveu por mais de 300 anos? Isso aqui é a minha diversão matinal! Por exemplo, quando eu poderia imaginar que encontraria a Morgenstern perdida por aqui?
Faço uma careta. Morgenstern perdida? Raziel, quanta criatividade!
- É só sobre o que falam no submundo agora - ele declara e minhas sobrancelhas se juntam novamente. Odiava ser o centro das atenções- A tão famosa irmã de Sebastian Morgenstern retornou.
- Eu nunca fui a lugar nenhum - falo com um tom um pouco mais duro do que o necessário - E não fale sobre mim como se eu fosse um mártire.
- Não há o que fazer, você já se tornou um - o feiticeiro diz - Aqueles que não apoiavam seu irmão, mudaram de ideia após a Paz fria. Está claro para o Submundo o descaso da Clave conosco, e deixar as fadas fora dos acordos, Deus, isso foi a gota d'água.
- O que quer dizer com isso? - puxo o ar, mas meus pulmões parecem não se expandirem. Sinto o suor se acumular em minha nuca e o desespero tomar minha feição. Suas palavras me assustavam e me faziam querer não saber o que já estava claro para todos.
- Que o reinado da Clave precisa ter um fim, e que eles devem cair sobre a mão de um Morgenstern, assim como sempre teve que ser - meus pés parecem congelar no lugar em que estão, o feiticeiro continuou se movendo e isso fez com que batessemos no casal ao lado. Quero pedir desculpas mas o choque ainda preenchia meu rosto, me fazendo incapaz de qualquer reação.
- Acho que está na hora de uma troca de pares - Kit surge ao nosso lado encarando o feiticeiro com uma expressão impassível.
- Nós mal terminamos a dança, gostaria de ter mais tempo com a srta Morgenstern - o homem declara.
- Não dou a mínima, vai se afastar de Malysel agora e nos deixar em paz - o loiro retruca.
- Ou o que? - ele desafia - Já tinha ouvido falar sobre a arrogância dos Herondale, mas vocês realmente conseguem nos surpreender.
- Você parece bem informado sobre nós - o caçador diz - Então deve saber que conheço 79 maneiras de matar um homem e que posso fazer com que 70 delas parecerem um acidente.
Vejo a expressão do feiticeiro ir de raiva a uma calma estranhamente pertubadora, seus lábios se curvam em um meio sorriso antes dele fazer uma breve reverência diante de mim e nos deixar. Entro nos braços de Kit quase que de imediato, seus braços se fecham em volta da minha cintura e os meus em seu pescoço. O calor do seu corpo contra o meu é surpreendentemente reconfortante, fazendo com que meus músculos relaxem após toda a tensão daquela conversa.
- Obrigada - é a única coisa que consigo sussurar.
- Raziel, que esquisitão - me afasto para olha-lo - Você está bem?
- Acha que estamos em perigo? - as palavras pareciam ter vida própria, dificilmente sendo contidas em meus lábios.
- O que? Era só uma fada idiota.. - ele contradiz.
- Estou falando da nossa raça, Kit - toda a minha preocupação era visível em meu tom de voz - Todos esses assassinatos, mortes sem razão... e se na verdade nunca tivéssemos ganhado a guerra? E se ela na verdade nunca teve um fim? O Submundo nos odeia como nunca por causa da Paz fria, não temos contingente para lutar contra 4 raças, pessoas vão morrer, a Clave vai cair! Pelo anjo, estou com tanto medo...
- Shhhhh - Kit toma meu rosto em suas mãos e eu paro de tagarelar - Relaxa, tá ok? Vamos dar um jeito, é o que estamos fazendo agora, achando uma solução. Nós não vamos cair, eu te prometo.
Minhas expressões suavizam diante do seu toque, sinto que posso derreter a qualquer momento. Seus olhos azuis brilhavam diante de sua promessa, me pego me agarrando a ela como se fosse tudo que eu tenho no momento. Tomo ciência da nossa proximidade e como seus olhos iam dos meus para a minha boca. Penso em me afastar, mas não quero, nem o faço. Aproximo o rosto do seu e salto sobre meus próprios pés quando trombetas tocam, tomando o lugar da música que antes tocava. As fadas que antes dançavam, agora fazem uma formação em volta do trono da rainha. Seelie se levanta e eles se curvam em uma reverência diante dela, enquanto eu e Kit permanecemos parados.
- Amados suditos - ela nomeia - Hoje marcamos o início da primavera, uma época repleta de cor, alegria e recomeço. Nada melhor para exemplificar isso do que a presença de filhos do anjo em nossa corte. Peço que deixem de lado nossas desavenças, assim como sua rainha o fez, e deixem o espírito de fraternidade os preencherem.
Olho para Kit com as sobrancelhas juntas no meio da testa. Fraternidade? O que, agora ela vai falar que somos irmãos? Composto pela mesma carne, mas com sangue diferente? Me poupe. Reprimo a vontade de revirar os olhos e volto eles para a rainha.
- Malysel é irmã de Sebastian, alguém que foi muito querido pela sua rainha, portanto, sua presença em nossas terras sempre será bem vinda - completa.
- Agradeço por isso, majestade - digo de forma educada e suave - A senhora foi uma bela anfitriã, mas agora precisamos que nos dê as respostas que viemos buscar.
- Claro, digam-me suas questões - fala se sentando novamente ao trono.
Lanço um olhar para Lily- que em algum momento tinha se colocado ao nosso lado junto ao restante dos caçadores. Ela assente e toma a frente, cumprindo seu papel de líder.
- A senhora deve saber dos últimos acontecimentos no mundo das sombras, mundanos com a visão sendo mortos e tendo suas mãos arrancadas - Lilian fala - Iniciamos uma investigação e achamos um poema em um dos livros da nossa biblioteca sobre magia seelie.
Lily se aproxima com passos lentos e cuidadosos do trono e entrega a Seelie uma cópia do poema.
- Corte a mão, os lábios, a vida. Corte para obter poder de uma vida partida. Deixe que a morte esgueire-se perante ao corte. Derrame o sangue daqueles que não foram tocados pelo anjo e se banhe diante da queda daqueles ditos os mais fortes - a ruiva lê e solta uma risada baixa - Isso parece uma das cantigas que cantamos para nossas crianças.
- Com todo respeito, Majestade, achamos que parecem instruções - Lily diz da melhor maneira que alguém poderia acusar a outra de assassinato. Mudo o peso do corpo para a outra perna e sinto o quanto aquelas palavras eram perigosas, e quanto elas poderiam ser mal interpretadas. Sinto necessidade de apertar algo e agarro a manga da camisa social de Kit, sua mão se encaixa na minha e entrelaça os dedos nos meus. Ele deixa que eu aperte sua pele e isso me deixa um pouco mais calma.
- O que você quer dizer com isso, Nephilim? - o tom da rainha tinha mudado, quase conseguia perceber uma pontada de irritação em sua voz.
- Peço perdão se a ofendi, Alteza, mas o que quero dizer é que as semelhanças entre o poema e as características do caso são muito grandes.
- E por ser um poema Seelie acha que o assassino é um dos nossos? - a ruiva pergunta e eu suspiro. Respostas indiretas para perguntas indiretas, Lilian havia nos avisado sobre isso.
- Não fo...
- Não está claro? - uma voz pegunta, passando por cima das palavras de Lily, e então todos os olhos do recinto se voltam para Clary. Cravo as unhas na mão de Kit e peço ao anjo que o nível de paciência da rainha estivesse extremamente alto - Há palavras que ditam exatamente o que fazer para derrubar o poder da Clave em um livro do seu povo, palavras essas que dizem ser necessário matar e cortar as mãos daqueles que não foram tocados pelo anjo. Mundanos com a visão estão sendo assassinados, então não nos trate como idiotas, sabemos exatamente o que está se passando aqui.
- Guardas!
A rainha se levanta do trono e eu vejo a raiva estampada em seus olhos. De repente, cavaleiros fadas começam a nos cercar, forçando a nos agrupar no centro do salão em um círculo mal feito. Quando eles apontam suas lanças afiadas para nós, Kit me puxa para trás, me empurrando para o centro do círculo e colocando seu corpo entre mim e o soldado.
- Como tem coragem de vir até a minha casa e me acusar de tal crime?!
Já não massacraram o suficiente dos nossos? Já não nos prenderam e nos puniram o bastante? Pode ser que você não se lembre, Clarissa, mas só fomos obrigados a entrar em uma guerra por causa das leis que vocês criaram! Os acordos nunca foram justos com os submundanos, fomos obrigados a tomar decisões para o nosso bem. E apesar de negarem proteção a nós, nunca retrucamos tal coisa!
Vejo o sangue subir até as suas bochechas e, por segundo, penso que ela irá explodir de raiva. Um dos cavaleiros que nos cercavam pede para nós ajoelharmos e colocarmos as mãos atrás da cabeça, como nenhum de nós obedecemos as ordens, a fada que estava diante de Clary bate com o cabo da lança em seu joelho, fazendo-a cair sobre ele. Já o cavaleiro que estava de frente para Kit, acerta o cotovelo contra o seu rosto e o loiro se curva xingando com a mão no nariz sangrento. Fecho o punho, tentando controlar a raiva que aflorava dentro se mim. Agora nós teríamos problemas.
- Não revidem! - Lily ordena, parecendo ler meus pensamentos, mas já era tarde demais.
Me jogo contra os soldados, usando meu corpo e minhas técnicas para deixar a maioria deles inconscientes. Jace é o segundo a se deixar levar, o loiro ajuda Clary a se levantar e, em seguida, os dois também começam a se defender das fadas. Logo, até mesmo Lily é obrigada a entrar na briga, apesar de todos os seus apelos, o cenário na corte das fadas era desastroso. Infelizmente para nós, o contingente de soldados da rainha era muito maior do que achávamos. Para cada fada que derrubavamos, mais três entravam pelo salão para substitui-lo. Era um luta perdida. Percebo isso quando três cavaleiros se juntam para me derrubar, sinto minhas costas baterem contra o chão de terra e uma lâmina precionar meu pescoço. O cavaleiro que estava sobre mim tinha uma espada afiada em punho, sua mão era firme e ele estava pronto para cortar minha garganta se necessário. Porém, algo dentro de mim dizia que aquilo não iria acontecer.
- Você não teria coragem - digo com um sorriso desafiador nos lábios.
A pressão da lâmina aumenta e eu sinto-a cortar um traço fino em minha pele, sangue escorre para dentro do decote do vestido e eu permaneço imóvel enquanto a força que a fada usava na espada aumentava cada vez mais.
- BASTA! - um grito resoa pelo lugar e todos se voltam para rainha que estava de pé encarando-nos com olhos duros e arregalados. Reprimo um sorriso quando a lâmina deixa meu pescoço e eu comprovo minhas suspeitas.

O outro lado da história - Os Instrumentos Mortais Onde histórias criam vida. Descubra agora